A menina abraçou o pai, toda contente, e mostrou o desenho da
Sagrada Família que tinha acabado de pintar. Ele pegou o papel
mimeografado e perguntou, colérico, afastando a menina de seus braços:
Onde você arrumou isso?
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o suicídio representa uma
de cada cem mortes ocorridas no mundo, sendo a quarta maior causa de
morte de jovens entre 15 e 29 anos.
O que a ciência diz sobre o assunto?
De acordo com a área médica, a maior parte dos suicídios está
relacionada à depressão, que é definida pelo Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como “presença de humor
triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e
cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento
do indivíduo”.
Caracterizada por tristeza profunda e persistente, a depressão pode
afetar os pensamentos, comportamentos, sentimentos e o bem-estar,
fazendo com que as pessoas acometidas por ela se sintam ansiosas,
desesperadas, vazias, preocupadas, impotentes, inúteis, culpadas,
irritadas, magoadas ou inquietas.
Nem todas as pessoas que sofrem de depressão se suicidam, mas,
praticamente todas as pessoas que se suicidam, sofrem de depressão.
Origem da depressão
Embora seja considerada como o mal do século, ao contrário do que
muitos imaginam, não se trata de uma doença nova. Inicialmente chamada
de melancolia e, nos casos mais extremos, de loucura, a depressão é um
distúrbio afetivo que acompanha a humanidade ao longo da sua história.
No início do século 19, o médico francês Philippe Pinel classificou a
melancolia como doença e destacou a predisposição dos pacientes
acometidos por ela a cometerem suicídio.
O termo depressão começou a aparecer nos dicionários médicos por
volta de 1860 e, desde então, ela tem sido dividida em diversas
categorias, e os tratamentos têm variado bastante, sem, no entanto,
encontrar-se a cura ou conter-se a sua disseminação.
A doença da alma
Quanto mais se estuda, mais aspectos se descobrem sobre a doença, que
pode envolver fatores fisiológicos, como o desequilíbrio químico do
cérebro, vulnerabilidade genética, eventos estressantes da vida, uso de
medicamentos, dependência de álcool e drogas, variação sazonal e outros
problemas de saúde.
Não existem exames para detectar a depressão e o diagnóstico é
restrito à avaliação clínica e suas limitações. Os próprios médicos
admitem que, mesmo que os sintomas sejam bem descritos, enfrentam
dificuldades para tratar algo que não é bem compreendido.
Embora o corpo sofra as consequências da depressão, trata-se de uma
doença da alma, localizada num lugar que o bisturi e os exames
laboratoriais jamais alcançarão.
Fator comum
O assunto é complexo e os profissionais da área médica, embora
conheçam os sintomas que permitem o diagnóstico e as drogas usadas para
tentar minimizar os seus efeitos, não têm respostas à pergunta: Por que
as pessoas se matam?
Considerando a questão do suicídio, além dos sintomas que,
geralmente, precedem a consumação, e que variam pouco de um indivíduo a
outro, existiria um fator comum entre essas ocorrências?
Sim, existe um fator comum. E, para falar sobre ele, vou narrar um
pequeno episódio da vida real. Chamarei a sua protagonista de Maria.
A inocência violentada
A menina era fascinada pelo pai, que o tinha como seu herói. Ela não
devia ter mais que sete anos na tarde em que o abraçou após a chegada
dele do trabalho e, toda contente, mostrou o desenho da Sagrada Família
que tinha acabado de pintar. O pai pegou o papel mimeografado e
perguntou, colérico, afastando a menina de seus braços: “Onde você
arrumou isso?”.
A menina explicou que ganhara de uma amiguinha que estava no
Catequese e, antes que o pai tivesse tempo de falar qualquer coisa, ela
já emendou o pedido para que ele a matriculasse na Catequese para fazer a
Primeira Comunhão.
A atitude do pai, e o ódio presente no olhar que dirigiu a ela,
marcaram-na como uma tatuagem de fogo. Rasgando o papel, ele primeiro
gritou com a esposa, acusando-a de deixar a filha se envolver com coisas
da Igreja, sabendo que ele não admitia isso na sua casa.
Depois, vendo que a menina tremia, assustada, ele a puxou para perto
de si, sentou-a em seu colo e explicou longamente que Deus era uma
ilusão, uma mentira criada pelos homens e, sem considerar o vocabulário
limitado da criança, citou para ela um dos mais conhecidos chavões usado
por seu ídolo, Karl Marx: A religião é o ópio do povo!
Anos mais tarde
Quando conheci a Maria, na empresa em que trabalhávamos, ela já
estava perto dos 40 anos, e o estrago que a atitude do seu pai provocou
tinha deixado um rastro de miséria na vida dela. Posso afirmar que,
poucas vezes, conheci sofrimento maior.
Nossa identificação foi imediata, por termos uma história comum, a
depressão, da qual eu conseguira sair e ela ainda estava mergulhada. Ela
emendava uma licença médica à outra, então, quase não nos víamos no
trabalho, mas desenvolvemos uma grande amizade, fora do ambiente
profissional.
Uma alma em conflito
O primeiro presente que ela me deu foi uma imagem de Nossa Senhora
Aparecida. Explicou que queria me dar porque sabia que eu acreditava,
ela não. Ganhara a imagem de um amigo que a trouxe de Aparecida.
Justificava que não tinha coragem de jogar a imagem fora por
consideração ao amigo. Foi nesse dia que notei o conflito daquela pobre
alma…
Para resumir, em momentos de crise mais fortes, eu tentei ajudá-la
com o que tenho: a fé e a religião católica. Consegui que ela aceitasse
receber a visita de um sacerdote, mas, dominada pelo espírito do mal que
aprisionava a sua alma, ela tentou se colocar numa discussão filosófica
com ele e convencê-lo de que Marx estava certo e Jesus errado, aliás,
Jesus nem existia, era uma invenção da Igreja!
Destruiu a imagem de Nossa Senhora
Outras crises se sucederam, várias tentativas de suicídio, conversas
com outros padres. Foi ela mesma que me contou sobre a doutrinação feita
pelo pai. Ele já estava morto quando a conheci, mas, ainda que
estivesse vivo, creio que nem ele conseguiria desfazer o mal que causou à
sua própria filha, persuadindo-a a se tornar ateia como ele, numa
cantilena que se repetiu durante toda a sua infância e adolescência.
A mãe, uma senhora amargurada, ainda guardava os resquícios da fé,
simbolizada por uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, trazida de
Portugal, com mais de um metro de altura. O marido aceitou a imagem,
desde que ela a mantivesse escondida num cantinho. Depois da morte dele,
ela ousou dar um lugar de destaque para a santa, colocando-a sobre um
móvel na entrada da casa, ladeada por dois vasos de flor.
A imagem de Nossa Senhora era o último bastião da resistência dentro
daquela casa marcada pela angústia e pelo sofrimento. Num surto, Maria a
jogou no chão, quebrando-a em vários pedaços. Depois, me ligou,
chorando, desesperada, dizendo que Nossa Senhora não tinha culpa. “Bem,
ela nem existe!”, foi a minha resposta, porque sempre a cutuquei com
vara curta para tentar trazê-la à realidade.
A única coisa que ela me disse foi: “Por favor, não fala assim!”
O resumo desse episódio foi que ela gastou uma fortuna com uma das mais renomadas restauradoras do país para refazer a imagem.
Nesse período, entrou mais um padre no enredo, mas, ela também o
repeliu. Já admitia que Deus pudesse existir, mas dizia que ele era
sádico e cruel, por permitir tantas injustiças sociais. A sua guerra
interior era imensa.
O que pode tirar desse abismo?
No último sábado, recebi a triste notícia: Maria se suicidou. Em meio
a lágrimas e soluços, a única imagem que me veio à mente foi a da
menininha, correndo ao encontro do pai, com a bonita figura da Sagrada
Família que acabara de colorir…
Para fechar este relato, quero dizer que o fator comum entre todas as
pessoas que cometem suicídio, sejam elas ateias ou pratiquem uma
religião, é a falta de Deus. Porque, quando Deus sai, a morte entra.
Se você foi contaminado pela ideologia do ateísmo, saiba que mentiram
para você. E, se tem filhos, ainda que tenha caído na desgraça de não
acreditar, não cometa a violência moral de tirar isso deles.
A depressão sempre existiu e, em todas as épocas, pessoas se
suicidaram, porém, depois que virou moda não dar formação religiosa aos
filhos e deixar que eles decidam sobre isso quando forem adultos, muitos
pais estão chorando diante de uma sepultura.
O que mais pode evitar ou tirar desse abismo se não Deus?
Afonso Pessoa