terça-feira, 31 de maio de 2022

Que maior presente podemos dar a alguém? Escutá-lo


ESCUTAR O OUTRO É ESCUTAR A SI MESMO

“Escutar” é um verbo central na Bíblia, em hebraico se diz shemá e está presente mais de mil vezes no Antigo Testamento. No Novo Testamento, o verbo grego akòuo, “escuto, compreendo”, é usado mais de 400 vezes. A profissão de fé que está diariamente nos lábios de todo israelita fiel se inicia com shemá: “Escute!”, e é baseada em um texto bíblico cuja abertura soa assim: “Escute, Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt 6,4-5).

No final do rito da aliança entre Deus e Israel, Moisés toma o livro da Aliança e o lê na presença do povo que diz: Faremos o que o Senhor disse e o escutaremos (cf. Ex 24,7). “Escutar” implica obediência, acolhida atenta, disponível e aberta. Quando Moisés relata os mandamentos do Senhor, todo o povo responde: O que o Senhor disse faremos! (cf. Ex 19,8). A Bíblia propõe uma religião de escuta que tem como meta o encontro com Deus em um abraço de amor. Por isso, o imperativo que segue o “escutar” é: “Amarás o Senhor”.

Isaías escreve: Como são belos os pés do mensageiro que faz escutar (shemá) a paz, do mensageiro das boas-novas que faz ouvir (shemá) a salvação (cf. Is 52,7). Jesus diz, justamente, nas bem-aventuranças: Bem-aventurados os vossos ouvidos porque ouvem (cf. Mt 13,16). Shemá possui um significado muito rico: escutar, prestar atenção e obedecer. A raiz hebraica sh-ma significa também “compreender”, como na história da torre de Babel, quando Deus diz: Venham, vamos descer e confundir a língua deles para que eles não se compreendam, yishme’u (cf. Gn 11,7).

É interessante que não existe o verbo “obedecer” no Antigo Testamento e sim o “escutar”, pois Deus pede ao povo de Israel que O escute, ou seja, reflita, tente entender, internalize, e só então responda ao que Deus pede. Ele quer que o povo seja um povo da “escuta”. Escutar é, portanto, a virtude-chave da vida religiosa.

Podemos fazer muitas coisas por uma pessoa, uma mãe pelos filhos, um marido pela esposa e vice-versa, um pároco pelos seus paroquianos, um membro de uma comunidade pelos seus irmãos; mas nada é maior e faz mais bem do que a disponibilidade para os escutar. Mas como escutar?

Na exortação apostólica Christus vivit, Papa Francisco apresenta-nos uma esplêndida catequese sobre como se pode escutar verdadeiramente o outro. Antes de tudo, é estar atento ao outro, enquanto ele se entrega a nós em suas palavras. O sinal dessa escuta é o tempo que dedico a ele. Não é uma questão de quantidade, mas que o outro sinta que o meu tempo é dele: o tempo que ele precisa para expressar o que deseja. Deve sentir que o escuto incondicionalmente, sem me ofender, sem me escandalizar, sem me irritar, sem me cansar.

Mas tudo isso é muito difícil às vezes: que tal rezar interiormente pelo outro enquanto o escuto? Escutar é um gesto supremo de amor e o maior presente que posso dar a uma outra pessoa.

terça-feira, 24 de maio de 2022

A Igreja e a escravidão

 A Igreja e a escravidão

Neste mês, o dia 13 de maio recordou-nos os 134 anos da abolição jurídica da escravidão no Brasil. Mais de um século nos separam desse acontecimento. Suas consequências, em alguns aspectos, no entanto, ainda hoje são sentidas, ora em episódios explícitos de racismo, ora em regimes de trabalho similares à servidão ou na negação de políticas públicas reparadoras de injustiças passadas. 

A relação entre Igreja e Escravidão, embora hoje seja uma postura clara e bastante definida, já foi complexa e, não raro, obtusa. Até meados do século XV a posição oficial da Igreja era de certa leniência e até cooperação com o processo escravocrata. Papas como Gregório I e Nicolau V, para citar exemplos, eram cônscios dos meandros da escravidão e em certa medida rechaçavam posturas abolicionistas ou libertárias de escravos. Com o Papa Eugênio IV, mormente na bula Sicut dudum, essa postura foi alterada. O Pontífice pedia explicitamente a restituição de liberdade aos escravos nas ilhas canárias. Na esteira desse papa, outros foram se manifestando e delineando a profunda aversão da Igreja ao processo escravocrata e reafirmando a defesa de liberdade de todos os povos, raças e culturas.

No caso do Brasil, desde os tempos coloniais, foi introduzido o processo de escravidão. Em certa medida, a Igreja colaborou nesse percurso. Há registros de que ordens e congregações religiosas possuíam escravos. Mesmo que se afirme que  recebessem um tratamento diferenciado, eram pessoas em situação de privação de liberdade e sujeitos à condição servil. No processo abolicionista, mesmo que no entardecer desse movimento, muitos bispos e padres apoiaram o fim da escravidão, dentre eles, Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, ordinário local, da época, da diocese de São Paulo. A carta In plurimis, de Leão XIII, dirigida ao episcopado brasileiro, fazia decisiva condenação da escravidão e pedia aos bispos que defendessem o fim dessa situação. Ela só foi conhecida no Brasil após a proclamação da libertação dos escravos, contudo foi a retificação da posição da Igreja acerca da situação de um dos últimos países a acabar com a escravidão.

Mais de um século após a abolição da escravidão, reminiscências da cultura escravocrata ainda são sentidas. Trabalhos análogos a escravidão e racismo estrutural  ainda não foram abolidos do nosso horizonte. Trata-se de um choque para a civilização ocidental, uma contradição insolúvel que ainda salta aos olhos nos nossos tempos. A Igreja, sem negar sua história e seu passado, na atualidade defende a liberdade de todos e condena, como fez recentemente o Papa Francisco na sua última encíclica chamada Fratelli tutti, o trabalho escravo (Ft 118,248) e, mais ainda, convida a humanidade a uma fraternidade universal e amizade social. Urge, pois, que esse discurso penetre agudamente até a mais profunda epiderme da estrutura eclesia.
 

 

terça-feira, 17 de maio de 2022

10 ensinamentos do papa Francisco para as famílias

 Crédito: News.va/Facebook

Este artigo relembra as várias ocasiões em que o Papa Francisco dirigiu-se à família. 

Na homilia da missa que marcou o início do seu pontificado, seis dias depois da sua eleição, Francisco falava do cuidado e da ternura. Referindo-se à vocação de guardião a que Deus tinha chamado São José, celebrado naquele dia, ele dizia: “É cuidar uns dos outros na família: os esposos guardam-se reciprocamente, depois, como pais, cuidam dos filhos, e, com o passar do tempo, os próprios filhos tornam-se guardiões dos pais.”

Era a primeira vez que o papa latino-americano falava da família, um tema que se tornou recorrente no seu pontificado. De fato, ele convocou dois sínodos de bispos para tratar da “vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo” e dos “desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização”, em 2014 e 2015. Além disso, celebrou o casamento de vinte casais na Basílica de S. Pedro, em 2014, e dedicou as suas catequeses semanais ao tema da família durante um ano inteiro.

Uma interpretação distorcida de palavras e gestos de Francisco fez com que muitos duvidassem do comprometimento do papa com a valorização do matrimônio e da família. Um olhar mais atento, porém, não deixa dúvidas que essa é uma preocupação que está no coração do Papa. 


A importância de sonhar

Não é possível uma família sem o sonho. Numa família, quando se perde a capacidade de sonhar, os filhos não crescem, o amor não cresce; a vida debilita-se e apaga-se. Por isso, recomendo-vos que à noite, ao fazer o exame de consciência, vos ponhais também esta pergunta: Hoje sonhei com o futuro dos meus filhos? Hoje sonhei com o amor do meu esposo, da minha esposa? Hoje sonhei com os meus pais, os meus avós que fizeram a vida avançar até mim? […] Não percais esta capacidade de sonhar. E, na vida dos cônjuges, quantas dificuldades se resolvem, se conservarmos um espaço para o sonho, se nos detivermos a pensar no cônjuge e sonharmos com a bondade, com as coisas boas que tem. Por isso, é muito importante recuperar o amor através do sonho de cada dia. Nunca deixeis de ser namorados!                                                                                                            (Encontro das Famílias, Manila, Filipinas, 15 de janeiro de 2015)


 A família nos ensina a abertura ao outro

As relações baseadas no amor fiel, até à morte, como o matrimônio, a paternidade, o ser filho ou irmão, aprendem-se e vivem-se no núcleo familiar. Quando estas relações formam o tecido básico de uma sociedade humana, conferem-lhe coesão e consistência. Portanto, não é possível fazer parte de um povo, sentir-se próximo, cuidar de quem está mais distante e infeliz, se no coração do homem estiverem fragmentadas estas relações fundamentais, que lhe dão segurança na abertura ao outro. […] Perante uma visão materialista do mundo, a família não reduz o homem ao estéril utilitarismo, mas oferece-lhe um canal para a realização dos seus desejos mais profundos.
(Mensagem por ocasião do I Congresso Latino-Americano de Pastoral Familiar, 5 de agosto de 2014)

Sem família não há humanidade

A família é importante, é necessária para a sobrevivência da humanidade. Se não existe a família, a sobrevivência cultural da humanidade corre perigo. É a base, nos apeteça ou não: a família.                                                                                                                       (Entrevista na Rádio Catedral, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013) 

Ideologias que destroem a família

Existem colonizações ideológicas que procuram destruir a família. Não nascem do sonho, da oração, do encontro com Deus, da missão que Deus nos dá. Provêm de fora; por isso, digo que são colonizações. […] E assim como os nossos povos, num determinado momento da sua história, chegaram à maturidade de dizer não a qualquer colonização política, assim também como família devemos ser muito sagazes, muito hábeis, muito fortes, para dizer não a qualquer tentativa de colonização ideológica da família. […] A família está ameaçada também pelos crescentes esforços de alguns em redefinir a própria instituição do matrimônio mediante o relativismo, a cultura do efêmero, a falta de abertura à vida.                     (Encontro das Famílias, Manila, Filipinas, 15 de janeiro de 2015)

A crise da família

A família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na diferença e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos. O matrimônio tende a ser visto como mera forma de gratificação afetiva, que se pode constituir e qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição indispensável do matrimônio à sociedade supera o nível da afetividade e o das necessidades ocasionais do casal.                                                                                 (Exortação apostólica Evangelii Gaudium, n. 66, 24 de novembro de 2013) 

Cada filho é um milagre

Um filho muda a vida! Todos nós vimos — homens, mulheres, que quando chega um filho a vida muda, é outra coisa. Um filho é um milagre que muda a vida. Vós, meninas e meninos, sois precisamente isto: cada um de vós é fruto único do amor, vindes do amor e cresceis no amor. Sois únicos, mas não sozinhos! E o fato de terdes irmãos e irmãs vos faz bem: os filhos e as filhas de uma família numerosa são mais capazes de comunhão fraterna desde a primeira infância. Num mundo muitas vezes marcado pelo egoísmo, a família numerosa é uma escola de solidariedade e de partilha; e destas atitudes beneficia toda a sociedade.(Discurso à Associação Nacional das Famílias Numerosas, Vaticano, 28 de dezembro de 2014) 

“Perder tempo” com os filhos

Quando confesso um homem ou uma mulher casados, jovens, e da confissão sobressai algo em relação ao filho ou à filha, eu pergunto: […] diga-me, o senhor brinca com os seus filhos? — Como, Padre? — o senhor perde tempo com os seus filhos? Brinca com os seus filhos? — Mas não, pois quando saio de casa de manhã cedo — diz-me o homem — eles ainda dormem, e quando volto, já estão na cama. Também a gratuidade, aquela gratuidade do pai e mãe em relação aos filhos, é muito importante: “perder tempo” com os filhos, brincar com os filhos. Uma sociedade que abandona as crianças e marginaliza os idosos corta as suas raízes e ofusca o seu porvir.                                                                                                      (Discurso aos participantes na Plenária do Pontifício Conselho para a Família, Vaticano, 25 de outubro de 2013) 

O amor supera a dificuldade

Os filhos dão trabalho. Nós, como filhos, demos trabalho. Às vezes, em casa, vejo alguns dos meus colaboradores que vêm trabalhar com olheiras. Eles têm um bebê de um mês, dois meses. Eu lhes pergunto: “Não dormiste?” Respondem: “Não, chorou a noite toda”. Na família há dificuldades, mas essas dificuldades são superadas com amor. O ódio não supera nenhuma dificuldade. A divisão dos corações não supera nenhuma dificuldade. Só o amor é capaz de superar a dificuldade. Amor é festa, o amor é a alegria, o amor é seguir em frente.
(Vigília de oração com as famílias, Filadélfia, Estados Unidos, 26 de setembro de 2015)


Nunca deixar as pazes para depois

O matrimônio é o caminho conjunto de um homem e de uma mulher, no qual o homem tem o dever de ajudar a esposa a ser mais mulher, e a mulher tem o dever de ajudar o marido a ser mais homem. Este é o dever que tendes entre vós: “Amo-te e por isso faço-te mais mulher” – “Amo-te e por isso faço-te mais homem”. É a reciprocidade das diferenças. Não é um caminho suave, sem conflitos, não! Não seria humano. É uma viagem laboriosa, por vezes difícil, chegando mesmo a ser conflituosa, mas isto é a vida! […] É normal que os esposos briguem: é normal! Acontece sempre. Mas dou-vos um conselho: nunca deixeis terminar o dia sem fazer a paz. Nunca.
(Homilia em missa com o rito do matrimônio, Vaticano, 14 de setembro de 2014)

A harmonia que vem de Deus

   

Queridas famílias, como bem sabeis, a verdadeira alegria que se experimenta na família não é algo superficial, não vem das coisas, das circunstâncias favoráveis… […] Na base deste sentimento de alegria profunda está a presença de Deus, a presença de Deus na família, está o seu amor acolhedor, misericordioso, cheio de respeito por todos. […] Só Deus sabe criar a harmonia a partir das diferenças. Se falta o amor de Deus, a família também perde a harmonia, prevalecem os individualismos, se apaga a alegria. Pelo contrário, a família que vive a alegria da fé, comunica-a espontaneamente, é sal da terra e luz do mundo, é fermento para toda a sociedade.
(Homilia na Jornada da Família por ocasião do Ano da Fé, Vaticano, 27 de outubro de 2013)

Gazeta do Povo 17/05/2022

segunda-feira, 9 de maio de 2022