Quando um navio vai sair do estaleiro
pela primeira vez, é costume realizar-se uma cerimônia na qual a nova
embarcação recebe o nome e, como desfecho do ato, uma garrafa de
champanhe é quebrada de forma espetacular no casco, escorrendo ali todo o
seu precioso líquido.
Depois disso, com o costado
recém pintado, liso e completamente limpo, a embarcação é lançada na
água e começa a navegar pelos oceanos. Com o passar dos anos a
velocidade do navio vai diminuindo, não por perda de força do motor, mas
porque no casco se incrustam moluscos em grande quantidade que
dificultam a navegação. Para recuperar a rapidez inicial é imperioso
retornar ao estaleiro e remover essa crosta. Também os automóveis quando
são novos funcionam bem, e depois de certo tempo de uso é necessário
submetê-los a uma revisão, a fim de garantir o bom desempenho de seu
mecanismo.
Assim também, sobretudo nós,
necessitamos fazer uma revisão… da alma. Temos de analisar com
frequência nossa vida espiritual, porque, apesar de sermos batizados,
recebermos os Sacramentos com assiduidade e praticarmos com seriedade a
Religião, é frequente passarmos por circunstâncias que nos levam a
cometer certas imperfeições ou a nos apegarmos às vaidades deste mundo, e
adquirirmos manias e maus hábitos.
É por isso que, na sua extraordinária
sabedoria, a Igreja distribui a Liturgia ao longo do ano de maneira a
nos proporcionar, em determinados momentos, a oportunidade de fazer a
nossa revisão espiritual. Um desses períodos é o Advento, tempo de
conversão, ou seja, tempo de exame de consciência, de penitência e de
mudança de vida. A pregação de São João Batista, recolhida por São
Mateus no Evangelho de hoje, nos oferece preciosos elementos para isso.
Convertei-vos!
São João vivera os anos precedentes à
sua missão pública nas paragens solitárias situadas mais ao norte do
Jordão, onde também, mais tarde, Nosso Senhor passaria os quarenta dias
de jejum, depois de ser batizado. Agora, ele percorria toda a região do Jordão, pregando ao povo:
No Batismo, todos recebemos uma semente
do Reino de Deus, que devemos fazer crescer em nós pela prática da
Religião, enquanto esperamos o momento de possuí-lo em plenitude, na
eternidade. Todavia, no mundo moderno essa esperança da vida eterna é
substituída por outra esperança, cujo objeto não é Deus: é a técnica,
são as invenções e as descobertas científicas, que tornam a existência
humana mais agradável e a prolongam de modo considerável. Chega-se até
mesmo a admitir a ideia de que a ciência ainda fará surgir o elixir
cujas propriedades tornarão imortais os homens.
Ora, a tecnologia e a medicina podem, na
verdade, aumentar o número de nossos dias, mas não eternizá-los.
Chegará a hora em que elas de nada adiantarão e deixaremos este mundo.
Aí termina a esperança mundana, como ensina o Livro da Sabedoria: “É
como poeira levada pelo vento, e como uma leve espuma espalhada pela
tempestade; ela se dissipa como o fumo ao vento, e passa como a
lembrança do hóspede de um dia” (5,14). Nesse sentido, a admoestação do
Precursor é muito clara e atual para nós: trata-se de fazer penitência
desses desvios, pois o Reino dos Céus não é dos que põem sua segurança
no progresso, na máquina ou no conforto material, e sim daqueles que
confiam em Deus e têm sua esperança posta na eternidade.
Aplicada pelos quatro evangelistas à
pessoa de São João Batista, esta passagem de Isaías possui um profundo
simbolismo que nos lembra quão oportuna é para nós a mensagem do
Precursor. Chama a atenção que o profeta localize a missão de João “no
deserto”. Devemos interpretar esta menção num sentido mais metafórico
que propriamente físico: João gritava e era ouvido por aqueles que
estavam “no deserto”, ou seja, no inteiro desprendimento de tudo o que
não conduz a Deus. Quando alguém, pelo contrário, está no bulício da
“cidade”, aferrado ao que nela existe: a vaidade, as máquinas, o
relacionamento humano que afasta da virtude etc., fica surdo à voz que o
convida à conversão. À primeira vista, muitas dessas coisas podem
parecer legítimas; no entanto, quem se apega ao que é lícito esquecendo-
se de Deus, logo estará apegado também ao que é ilícito. Em nosso caso
concreto, quantos afetos desordenados não estão impedindo que ouçamos o
clamor de São João, dirigido a nós a todo instante, seja por moções
interiores da graça em nossa alma, seja pela ação de outros?
Peçamos a Deus, que nos proporcione uma
inteira fidelidade aos seus mandamentos, e uma plena lucidez sobre o que
devemos nos desvencilhar, para que assim possamos receber com a alma
limpa, o Divino Infante que nos aguarda de braços abertos.
Por Guilherme Motta