Formação

O intuito desta página é de apresentar aos visitantes algumas opções de textos que foram utilizados em retiros do Instituto Santa Família. Portanto, são textos um pouco mais extensos, porque tem a função de um aprofundamento maior no tema. Sua leitura é enriquecedora tanto em nível individual, como para um grupo de oração num retiro.


A confissão 


Bem-aventurado Tiago Alberione - 6 de agosto de 1960 - por ocasião dos exercícios espirituais em Aríccia

Toda narração que lemos no Evangelho tem um determinado fim, um determinado ensinamento. Entre as várias narrações que lemos no evangelho, uma causa muita impressão. São Pedro era destinado cabeça da Igreja, portanto pai de toda a cristandade, de todos os que iriam crer no Evangelho, na mensagem da salvação. Entretanto Nosso Senhor permitiu que ele caísse em tríplice negação do próprio Jesus. Pedro, que devia ser o seu vigário preferido. E, por uma vez, uma segunda, uma terceira vezes renega Jesus Cristo, até jurar não tê-lo conhecido. São Pedro, porém, não foi privado de seu ofício que lhe tinha sido prometido por Jesus, de ser o chefe da Igreja. Mas Jesus quis que ele reparasse com tríplice promessa de amor: “Depois de comerem, Jesus disse a Simão Pedro: ‘Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?’ ‘Sim, Senhor, lhe disse, tu sabes que te amo’. Jesus lhe disse: ‘Apascenta os meus cordeiros’. Uma segunda vez lhe disse: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ ‘Sim, Senhor, disse ele, ‘tu sabes que te amo’. Disse-lhes Jesus: ‘Apascenta as minhas ovelhas’. Pela terceira vez lhe disse: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ Entristeceu-se Pedro porque pela terceira vez lhe perguntara: ‘Tu me amas?’ e lhe disse: ‘Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo’. Jesus lhe disse: ‘Apascenta minhas ovelhas’” (Jo 21,15-17).
Que significa isto? Significa que somos todos pecadores, mas que o Senhor veio para cancelar o pecado: “Ut deleatur iniquitas, para que fosse cancelado o pecado”, para que nós não nos desanimássemos, quando a recordação da vida passada nos causa remorso. Devemos lançar o olhar ao Crucifixo e dizer: Senhor, eu te amo. Sim, ó Senhor, eu te amo. Sim, quero amar-te agora, na vida, na morte, por toda eternidade.
Amar! O amor cancela até uma grande quantidade de pecados. Com efeito, Jesus o disse expressamente quando, convidado a comer, foi à casa de Simão o fariseu: “Um fariseu convidou-o a comer com ele. Jesus entrou, pois, na casa do fariseu e reclinou-se à mesa. Apareceu então uma mulher da cidade, uma pecadora. Sabendo que ele estava à mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume.
E ficando por detrás, aos pés dele, chorava e com lágrimas começou a banhar-lhe os pés, a enxuga-los com os cabelos, a cobri-los de beijos e a ungi-los com perfume. Vendo isto, o fariseu que o havia convidado pôs-se a refletir: ‘Se este homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca, porque é uma pecadora!’ Jesus, porém, tomando a palavra, disse-lhe: ‘Simão, tenho uma coisa a dizer-te’. ‘Fale, mestre, respondeu ele. ‘Um credor tinha dois devedores; um lhe devia quinhentos denários e o outro cinquenta. Como não tivessem com que pagar, perdoou a ambos. Qual dos dois o amará mais?’ Simão respondeu: ‘Suponho que aquele ao qual mais perdoou’. Jesus lhe disse: ‘Julgastes bem’.
         E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: ‘Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me derramaste água nos pés; ela, ao contrário, regou-me os pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Não me deste um ósculo; ela, porém, desde que eu entrei, não parou de cobrir-me os pés de beijos. Não me derramaste óleo na cabeça; ela, ao invés, ungiu-me os pés com perfume. Por esta razão eu te digo: seus numerosos pecados lhe são perdoados, porque ela demonstrou muito amor’” (Lc 7, 36-47).
O amor é a grande penitência, a grande reparação. Amemos tanto mais quanto mais fomos pecadores. E amemos com as obras, com os fatos. Amemos a Jesus e nunca mais ofendê-lo. Contentar Jesus, procurar a glória de Deus, seguir a Jesus na sua vida santíssima, pobre, casta, obediente. Isto é amor. E não basta: há ainda o amor ao próximo. Portanto, dois amores: amor a Deus que nos santifica e que repara as nossa culpa, e amor ao próximo que repara as culpas, mesmo se tivéssemos dado maus exemplos ou algum escândalo. Façamos tanto mais bem ao próximo quanto mais fomos frios, lânguidos, quando menos agimos com caridade para com o próximo. Sim. Que a confissão nos estabeleça no amor de Deus e nos estabeleça no amor do próximo, isto é, no apostolado.
Agora, lembremo-nos do filho pródigo o qual, nota o Evangelho, era mais jovem dos dois filhos; e se entende, a juventude muitas vezes se deixa levar por caminhos errados, por caminhos de pecado. Aquele filho se afastou e quis a parte de sua herança. O pai foi bom e lha deu. Mas o filho imprudente, exatamente porque jovem, gastou toda sua herança, isto é, a parte que tinha recebido do pai, em pecados de desonestidade. Aviltou-se a ponto de ser reduzido à miséria, tanto que, para ter um pouco de pão, pôs-se a serviço de um camponês que o mandou tomar conta de seus porcos. Infeliz! Antes, vivia na sua casa, filho de um rico senhor, tinha criados, nada lhe faltava e agora estava morrendo de fome, com um padrão que não queria que ele matasse a sua fome com as bolotas, porque estas deviam engordar os porcos. Então, entrou em si e pensou: “Aqui morro de fome”. Não tinha perdido a esperança, o sentido da confiança no pai. “Levantar-me-ei e irei ter com o pai. E chegando à casa do pai, lhe direi que não sou digno de ser chamado seu filho, e lhe pedirei que ele me tome pelo menos como um de seus empregados”. Mas o pai se excedeu em bondade, e quando o viu, o abraçou, o levantou da terra, porque o filho humilhado se tinha jogado em terra, ordenou que logo fosse vestido com roupas novas e caras, que ele vestia antes, e depois ordenou uma grande festa. O filho maior não estava presente, quando o menor voltou. Mas quando chegou do campo, ouvindo música em casa e vendo muitos convidados perguntou o que significava tudo aquilo. Disseram-lhe: “Teu irmão chegou e teu pai quis fazer uma grande festa”. Ele protestou contra o pai e lhe disse: “Eu sempre te obedeci e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos. E quando volta este teu filho que esbanjou tudo, tu lhe deste todas as demonstrações, mataste o novilho mais gordo e deste até uma festa”. E o pai respondeu: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois este teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado” (cf. Lc. 15,11 ss). Assim, disse Jesus; “Eu vos digo que, do mesmo modo, há mais alegria diante dos anjos de Deus por um só pecador que se converta do que noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15,7).
Parece-nos quase uma injustiça contra aqueles que conservam a inocência, mas não é assim; porque quem tem a inocência já tem todos os tesouros, possui o próprio Deus. Que se pode pensar mais? Contudo o que ressuscita de seu pecado, desperta no céu uma grande alegria, porque é uma vitória de Jesus Cristo, que morreu pelos pecadores, e então veem os frutos desta morte. Jesus, pagou pelos pecadores que aproveitam da sua misericórdia, do seu sangue. Esta festa que se faz no céu vai diretamente a Jesus que padeceu e morreu por nós na cruz.
         Aproximemo-nos do confessionário de boa vontade. Há santos que se confessavam diariamente, mas isto não é comum. Para os religiosos, oito ou pelo menos cada quinze dias. Mas devemos ter isso presente: não corrijamos somente o exterior, não acusemos somente os pecados de palavras, de língua e os pecados de ação, mas particularmente confessemos, para emendar-nos, os pecados de pensamentos, de sentimentos, os pecados internos: o orgulho, a inveja, as malevolências, os rancores, os atos de ira que às vezes não se manifestam exteriormente. Acusemos os maus desejos; contra a obediência, contra a caridade, contra a pureza, contra a fé, contra a esperança. Limpemos o coração, limpemos a mente, em primeiro lugar. O pecado externo é sempre fruto do interno, porque para cometer um verdadeiro pecado é preciso consentimento da mente. E quantos gostariam de roubar, e não o fazem por medo da polícia! Mas no seu coração já roubaram, porque desejaram as coisas alheias ou, em outro terreno, porque desejaram a mulher do próximo. O Senhor Jesus o repetiu no sermão da montanha que é preciso em primeiro lugar purificar o interior. Há entre os mandamentos dois, os dois últimos, que proíbem os maus desejos, quer em relação às coisas dos outros, quer em relação à pureza. Por que? Porque é sempre mais fácil o pecado interno e muitas vezes não é relevado. As pessoas superficiais fazem o exame de consciência somente dos pecados externos, das ações e também das palavras, mas, sobretudo, das ações.
Quando fazemos o exame de consciência para a confissão, leiamos o livro interno da consciência, aquele livro secreto no qual ninguém pode entrar, cuja porta pode ser aberta somente ao confessor. É o santuário da consciência, em que podemos encontrar o que agrada a Deus e podemos também encontrar aquilo que lhe desagrada. Encontramos o que agrada a Deus, o espírito de fé, o amor a Deus. E encontramos também o que desagrada a Deus, isto é, as faltas de fé, as faltas de confiança, as faltas de obediência sincera, as faltas de castidade sincera, as faltas que se referem à própria castidade.
Com respeito à confissão devemos recordar isto: no pai-nosso dizemos. “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Damos, portanto, por assim dizer, a medida ao Senhor de quanto nos deve perdoar. E a medida qual é? Quanto nós perdoamos aos outros. A medida com que queremos ser perdoados, nós a damos a Nosso Senhor, para que ele meça o perdão a nós. Quem não perdoa não é perdoado: “Deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-se com o teu irmão; e depois virás apresentar a tua oferta” (Mt 5,24). Primeiro, o Senhor quer que perdoemos aos outros e depois que lhe peçamos perdão. E em que medida ele nos perdoará? Na medida em que nós perdoamos. Se perdoamos a ofensa, é nos perdoado o pecado. Mais ainda: não só perdoamos, mas oramos para que o Senhor abençoe aquele que nos ofendeu, então o Senhor nos dá mais graça. E se fazemos o bem a quem nos ofendeu, o Senhor faz cair sobre nós um número extraordinário de graças. Em substância, Deus nos dá tudo o que desejamos aos outros. Portanto, vejamos se internamente perdoamos de coração. O Senhor não perdoará os teus pecados, se não perdoares de coração a quem te ofendeu.
         A confissão não deve ser somente como a graça, o sacramento para cancelar o passado que não foi bom, para cancelar os pecados; mas, sobretudo, deve ser meio para progredir no futuro.
Para preparar-nos para a confissão, é preciso que haja dor, mas unida ao propósito: arrependimento do passado e propósito de não mais pecar no futuro. O arrependimento é a detestação dos defeitos, é propósito de praticar a virtude contrária. Se, por exemplo, fomos soberbos, pratiquemos agora a humildade; se fomos tíbios, pratiquemos agora o fervor; se tivemos no coração apegos menos bons, dirigíamos agora o nosso coração a Deus, amemos mais o Senhor Jesus. Portanto, a confissão frequente é ordenada especialmente para o progresso, para a conversão, para a mudança, para melhorar a vida, numa palavra, para o futuro. Aqueles Santos que se confessavam todos os dias, por exemplo, São Carlos Boromeu, bispo de Milão, não o faziam em absoluto porque pecavam diariamente ou porque não podiam celebrar missa nem receber a santa comunhão. Mas se confessavam para melhorar e porque cometiam diariamente defeitos. Geralmente não são pecados, são fraquezas, são imperfeições. Se uma pessoa tem uma distração involuntária na oração, é um defeito, não é um pecado. Mas estes Santos se confessavam frequentemente para melhorar a vida e para amar mais o Senhor e progredir no espírito de fé, na observância dos mandamentos, dos conselhos evangélicos, para progredir no amor de Deus. [Pe. Alberione, nos últimos anos de sua vida, se confessava diariamente]
Mesmo quando fazemos o exame de consciência, não o fazemos porque queremos confessar-nos, mas porque à noite queremos dar uma olhada ao dia para ver como o passamos. Prometemos para o dia seguinte comportar-nos melhor e progredir no bem. E quando de manhã vamos à Igreja, vamos aí para conseguir as graças de bem passar o dia, porque queremos que o novo dia seja melhor que o anterior. E então pedimos as graças para que o dia seja bom e agrade o Senhor.
Para fazer uma boa confissão é necessária, sobretudo, a oração para conhecermos a nós mesmos, para compreendermos e detestarmos o pecado, para aprendermos e sentirmos a necessidade de mudar. Se depois de tantas confissões, não houve uma melhora, certamente as pessoas não tiveram arrependimento, verdadeira dor, verdadeiro propósito. Algumas vezes se chega a duvidar de que as confissões são feitas por hábito, para se comunicar com o sacerdote e falar um pouco de coisas particulares. A confissão referente ao passado, é para obter o perdão; referente ao futuro, é para o progresso. No confessionário é absolutamente necessária a sinceridade, é absolutamente necessário que se acuse o pecado mortal certamente cometido e certamente não confessado, e do qual não se teve dor suficiente. Não caiámos nos escrúpulos e não pensemos sempre no passado. Ao passado se põe ordem com a confissão. Olhemos, porém, para o futuro e para o presente. Afinal de contas, o passado como foi, foi. Servir-nos-à de ensino para manter-nos na humildade. Mas o que o Senhor espera de nós agora é agir bem no presente e no futuro. Portanto, a obrigação de confessar é somente para o pecado verdadeiramente cometido, verdadeiramente grave, pecado jamais acusado. Estas são as três condições; quanto ao resto, fiquemos em paz.
O pecado deve-se acusar quanto ao número, se foi repetido, e também com as circunstâncias que agravassem a culpa. Se se teve um discurso mau e haviam moças que escutavam, ou havia diversas pessoas, compreende-se que aquela circunstância deve ser expressa no confessionário, porque houve escândalo. Ainda mais se foi um pecado cometido em lugar sagrado, porque esta é uma circunstância que agrava notavelmente e que constitui algumas vezes um pecado a parte.
Quanto à melhor penitência, já o disse no começo: amar, amar, amar a Deus; amar, amar o próximo. Toda obra, todo empenho de apostolado cancela o mal passado e restabelece o verdadeiro amor de Deus. Mas, além disso, a penitência maior é a correção. Agir diversamente do que se agiu antes, esta é verdadeira penitência, e ao mesmo tempo serve para o progresso espiritual.
         Peçamos ao Senhor a graça de que as nossas confissões sejam sempre bem feitas e sejam úteis às nossas almas. Nenhum escrúpulo, mas delicadeza. E não sejamos superficiais, mas entremos em nós mesmos; folheemos o livro da nossa consciência, para que não levemos nada ao juízo, mas cheguemos já perdoados, já julgados.


FORMAR PARA A FIDELIDADE NUMA CULTURA LIGHT




Ir. Afonso Murad (amurad@marista.edu.br)

É possível formar para a fidelidade, numa cultura light? Em que condições e com qual grau de certeza? Que atitudes e estruturas são necessárias para isso acontecer? Estas perguntas são decisivas para a ação pastoral da Igreja e também para a Vida Consagrada. Começaremos caracterizando a cultura light. A seguir, mostraremos que elementos na Igreja, favorecem o desenvolvimento do homem e da mulher light. Por fim, traçaremos algumas pistas, no sentido da formação para a fidelidade na Igreja e na vida consagrada.
1. A cultura “light”

A rigor, não existe uma cultura “light”, enquanto sistema elaborado de significações, configurado por um grupo humano e identificável a partir de matrizes étnicas, sociais, de gênero ou geracional. O termo “light” serve mais como uma categoria, uma aproximação conceitual. Ele dá conta de explicar uma forma de conceber o mundo e de se comportar, que está presente em diferentes grupos na sociedade contemporânea, com intensidade também distinta. A expressão “light” é uma imagem, uma analogia, que reúne algumas características do que se convencionou chamar de cultura “pós-moderna” ou “modernidade líquida” (Zygmunt Bauman). A expressão remonta a um famoso livro de Henrique Rojas, denominado El hombre light (Ed Temas de Hoy, Madrid, 1992) atualmente na 20 edição.
“Light” tem, em inglês, muitos sentidos. O primeiro é o substantivo “luz”. Daí deriva o adjetivo que significa “claro”, como por exemplo, “light blue” (azul claro). O termo ganhou importância e novo significado na sociedade atual devido à associação com alimentos de baixo teor calórico. Basta entrar no supermercado ou na padaria, para encontrar vários produtos “light”. Eles apresentam, no mínimo, a redução de 25% de determinado nutriente que fornece energia (carboidrato, gordura e proteína), em comparação com o alimento convencional. O “diet”, por sua vez, diz respeito a alimentos e bebidas completamente sem açúcar ou gordura, originalmente destinados a quem tem alguma limitação na saúde, como diabete ou colesterol elevado. As pessoas consomem cada vez mais produtos “lights” e “diets”, para manter o peso, não engordar e conservar o padrão estético que se determinou como ideal. Alimentam a ilusão de que podem comer e beber à vontade, fruir do prazer (sabores e odores), sem pagar o preço de engordar. Soa como uma solução mágica!
A partir desta referência, no imaginário atual “light” se associa a “leveza”, não somente física, mas também psicológica e comportamental. Uma pessoa light rejeitaria a rigidez, ou seja, aquilo que é duro (hard) e pesado (heavy). Ela estaria no âmbito do que é seguro, sem riscos.
Segundo Wilmar L. Barth, no homem light, “tudo está sem calorias, sem gosto ou interesse. A essência das coisas não importa, só é quente o superficial, e a vida pode ser comparada a um coquetel, onde tudo pode ser experimentado, mas tudo está desvalorizado. Centrado em aproveitar bem o momento e consumir, em se interessar por tudo e, ao mesmo tempo, por não se comprometer com nada, o homem light ajeita tudo. Para ele, tudo é transitório, passageiro e assim até a democracia e a vida conjugal se tornam lights. O lema é não exigir muito e alcançar uma tolerância absoluta. Não existem desafios, nem metas históricas e grandes ideais, nem um esforço ou luta contra si próprio (..) Como não tem critérios sólidos, o homem light é superficial e aceita tudo. Geralmente não tem um projeto de vida e lhe interessa possuir 2
e consumir loucamente”. Fabrica sua verdade de acordo com preferências pessoais, escolhendo o que gosta e rejeitando o que não lhe apetece.
E conclui o autor, a respeito do homem e da mulher light: “sua ideologia é o pragmatismo. Sua norma de conduta é a vigência social, as vantagens que leva, o que está na moda (..) Tudo é suave, ligeiro, sem riscos; somente faz algo com garantia. Em sua vida, não há rebeliões, pois a moral se converteu numa ética de regras de urbanidade ou mera atitude estética” (W. Barth, O homem pós-moderno, religião e ética, in: Teocomunicação, v.37, n.155, março 2007, p. 91s).
Cecília Benetrix resume assim as características do “homem light”, a partir de E. Rojas: “Es esa persona que carece de esencia, que es consumista, relativista pues es un hombre sin referentes, sin puntos de apoyo, envilecido, rebajado, convertido en un ser libre que se mueve pero no sabe a dónde va, un hombre que es veleta. Es vacío, y vive em la era del vacío, lo único que le interesa es su ascenso social y el placer a toda costa, su fin es despertar admiración o envidia. Adquiere gran cantidad de información que le venden los médios pero no es capaz de hacer una síntesis de aquello que percibe y en consecuencia se há ido convertiendo en un sujeto trivial que acepta todo y es muy manejable. Posee uma decadencia moral debido al hedonismo (placer sobre todo) y a la permisividad. Gracias a estos dos conceptos el hombre light se evade a si mismo y se sumerge en las sensaciones más sofisticadas contemplando la vida como um goce ilimitado”.
Para evitar análises pessimistas, é importante ressaltar alguns traços da cultura light na sua origem. Eles são ambivalentes, e talvez o problema seja a forma unilateral como se manifestam. Há um contexto que lhes deu origem e favorece sua manifestação. Por exemplo, na sociedade contemporânea, a luta pela sobrevivência devora grande parte da energia vital das pessoas. Cada vez mais, não se tem segurança a respeito do futuro profissional. O ambiente de trabalho, devido ao clima de constante competição no mercado, é tão estressante e exigente, que, como forma de compensação e alívio, as pessoas tendem a sonhar com a situação oposta, na qual possam provar a leveza, a ausência de cobranças, a fruição e o prazer. Mesmo que isso não seja real para a grande maioria, permanece como desejo e ideal.
Outro fato elucidativo: na sociedade midiática, da imagem e da simulação, só existe o que aparece. O estético saiu das Igrejas antigas, dos museus e das galerias de arte e invadiu o cotidiano. E isto é bom, pois significou uma forma de democratização. É compreensível que as pessoas estejam mais sensíveis ao aparente e se extasiem com o belo. A questão é quando o estético substitui o ético. Passa a ser considerado bom aquilo que é produzido, de forma artificial, como beleza, a serviço do consumo.
Com espírito de fé, descobrir-se-á nos “Sinais dos Tempos” do homem light não somente as ameaças, mas também as oportunidades para a humanização e o Reino de Deus. Isso exigirá, ao menos, uma disposição das pessoas para avaliar seus hábitos e posturas, investir no autoconhecimento e querer crescer.
Que valores estão implícitos na cultura light, e poderão ser positivos, se forem desenvolvidos em perspectiva humanizadora e comunitária, ou seja, voltados para a evolução da humanidade e compreendidos de forma coletiva, para além do indivíduo? Citemos alguns.
*Leveza: consiste em cultivar a gratuidade, a alegria, o contentamento, e o senso de humor, como elementos decisivos da vida, em contraposição ao pessimismo e ao 3
perfeccionismo. A leveza é um contraponto às exigências demasiadas do mercado, baseado na competição e nos resultados.
*Flexibilidade: a pessoa aprende a relativizar o que antes parecia intocável e inquestionável. Critica a rigidez dos códigos de comportamento, especialmente das religiões tradicionais, e descobre o valor do diálogo.
*Cotidianidade: Há um desejo de simplesmente viver o hoje, sem excesso de preocupação com o futuro.
*Estética: Desenvolve-se a sensibilidade ao belo, em várias instâncias. Desde as embalagens, até o corpo humano, contemplando também o design da casa e da cidade. Abre-se a oportunidade de uma nova síntese entre a bondade e beleza, se a aparência é uma porta de entrada para o ser-que-se-manifesta.
*Corporeidade: o respeito e a valorização do corpo. Critica a violência física contra os fracos, especialmente as crianças e as mulheres. Após séculos de negação, abre-se a possibilidade de uma visão unificadora de corpo-espírito. O corpo é expressão carnal da pessoa e de seu mistério.
2. A fidelidade na cultura light
Fidelidade significa optar por uma causa, uma pessoa, um sistema de valores ou uma instituição. Alimentar a mística desta escolha e perseverar, até ao máximo, na opção feita. Assim, fala-se em fidelidade conjugal, quando um homem e uma mulher, a despeito de todas as crises de relacionamento e resistindo aos assédios, mantêm o compromisso recíproco de alimentarem a relação de casal. Define-se como fidelidade partidária a manutenção da filiação de determinado político ao partido ao qual se filiou, mesmo que questione muitas decisões dele emanadas. Conhecemos e experimentamos a fidelidade na Vida Consagrada, como perseverança no compromisso que professamos publicamente, através dos votos ou de outra expressão de consagração a Deus, e de pertença à determinada família religiosa (instituto, congregação, movimento, comunidade de vida).
A filósofa Hanna Arendt diz que o ser humano tem uma bela característica: pode prometer algo em relação ao futuro. Quem promete, arrisca, pois é impossível prever, com antecedência, tudo o que vai acontecer. Ao prometer, a pessoa desabsolutiza o presente e se empenha, antecipadamente, com o futuro. Ter esperança e prometer são elementos fundamentais para edificar o futuro. Assim, fidelidade é cumprir a promessa. É honrar com a palavra dada, mesmo que as circunstâncias mudem. Portanto, fidelidade exige promessa, persistência, risco e fé no futuro.
O tempo é implacável e cruel. Ninguém permanecerá jovem, forte, saudável, cheio de energia e beleza durante toda a vida. As instituições mudam, e seus ideais se modificam ou se perdem. O amor humano, por mais belo e intenso que seja, pode se reduzir ao nada. Ou, pior ainda, ir para o seu reverso. Quantas relações humanas, marcadas por uma atração irresistível, terminam em ódio! Assim se expressa poeticamente o compositor brasileiro Caetano Veloso:
“Um amor assim violento, quando torna-se mágoa,
É um avesso de um sentimento, oceano sem água”.
Tanto no passado quanto no presente, muitas pessoas fizeram durante a juventude uma profunda experiência de Deus, mas no correr dos anos decaíram na mediocridade espiritual ou até mesmo na indiferença. Na bíblia, aparece muitas vezes o apelo à perseverança. O profeta Oséias adverte que a fidelidade do povo a Javé é muito 4
frágil, como a camada tênue de orvalho, que desaparece quando o sol nasce (Os 6,4). Jesus pede aos seus discípulos para “Vigiar e orar”, sobretudo no momento da provação (Lc 21,36). O Apocalipse alerta os cristãos: “Vocês esfriaram no primeiro amor! Voltem!” (Ap 2,4s). Perseverar no amor é um processo. Por isso, o evangelista João usa a bela imagem do ramo que permanece unida à videira, recebendo dela a seiva que lhe comunica vida e produzindo frutos (Jo 15,4s)
Assumir compromissos e ser fiel é difícil. Exige sacrifícios e renúncias. Os frutos virão depois! Viver os compromissos e manter a fidelidade sempre foi desafiador; agora é muito mais. As condições de vida, as expectativas e os relacionamentos humanos mudam com mais facilidade. As pessoas têm acesso a mais informações e a experiências diversificadas. Os laços relacionais e institucionais, em todos os níveis, estão mais tênues. Essa situação configura um perigo e uma oportunidade. O perigo reside no medo de compromissos, na pouca generosidade em se arriscar por uma pessoa, uma causa ou um projeto. Há pessoas que, previamente, se negam a pensar na possibilidade de casar ou de entrar numa congregação religiosa, porque não suportam a idéia de assumir um compromisso por toda a vida. Mas hoje é possível viver os compromissos com mais realismo e humildade, não devido a uma fórmula externa, mas sim ao empenho que brota do núcleo da liberdade humana. Alguns denominam esta postura como “fidelidade do coração”.
Para o homem a mulher light, a fidelidade soa como algo difícil, pesado, até insuportável. Seria com uma cadeia que limitaria sua subjetividade, um controle externo à liberdade. Tendo a satisfação como o grande critério, ele(a) não aceitam as dificuldades e o sofrimento como parte de qualquer opção duradoura. Ao concentrar suas energias em viver somente o presente, não consegue vislumbrar opções em longo prazo.
3. A cultura light na Vida Consagrada
Certa vez, fiquei hospedado na casa de uma congregação religiosa masculina. Ao entrar no quarto reservado para mim, algo diferente me chamou a atenção. Deparei-me com um imenso espelho, de dois metros de altura, colocado estrategicamente no centro do quarto. Sem entender bem o que aquele objeto fazia ali, peguei a toalha que estava sobre a cama e fui tomar um banho. Ao entrar no banheiro, outra surpresa. Além do espelho sobre a pia, havia ainda outro, bem grande, dentro do box do chuveiro. Ao todo, três espelhos! O antigo morador deste quarto, que eu não havia conhecido, talvez nem enxergasse o mundo. Somente a si próprio.
Perguntei ao coordenador da comunidade religiosa se todos os quartos tinham tantos espelhos, e qual a razão disso. Ele me respondeu, um pouco desconcertado, que aquele quarto foi de um tal frei, muito vaidoso, que havia morado ali durante dois anos. E completou: “Você devia ver a quantidade de cosméticos que ele deixou para trás: perfumes importados e cremes para pele, sem contar os xampus e condicionadores!” Outros fatos posteriores confirmaram, para mim, que o “homem light” está chegando à Vida Religiosa masculina.
Na Vida Consagrada, o perfil do religioso(a) light seria caracterizado assim:
*Ausência de grandes ideais, que mobilizam a pessoa, despertando nela generosidade, ousadia e empenho para investir suas energias.
*Indiferença diante das grandes questões econômicas, sociais e ambientais, preocupando-se sobretudo com seus interesses pessoais. 5
*Prolongamento ou retorno da adolescência, manifestando uma demora para assumir os compromissos da vida adulta, e responsabilizar-se pelos seus acertos e erros.
*Grande preocupação com a aparência pessoal.
*Consumismo: desejo ilimitado de adquirir coisas que dão status.
*Espiritualidade superficial, restrita ao âmbito da aparência, do emocional e do ritual.
*Curta visão do tempo: praticamente gira em torno do presente e do futuro imediato. Daí, não cultiva a paciência e a perseverança necessárias para traçar um projeto de vida, a médio e longo prazo. Tende a ser alguém impulsivo nos desejos e inconstante na esperança.
*Dificuldade em lidar com limites.
* Não distingue bem os valores, ao tomar decisões.
Dificilmente se encontrará alguém com todos os traços apresentados acima. A partir de sua história pessoal e do cultivo de valores humanos e cristãos, existem outras características que completam ou equilibram estas tendências no homem ou na mulher consagrados. Há o mistério de cada um, a luta entre a luz e as trevas no seu coração, e possibilidades de conversão. Por isso, devem-se evitar clichês e caricaturas. Não se trata de classificar ninguém, mas sim de perceber em que intensidade estas características se manifestam em pessoas e grupos. E, naturalmente, como elas dificultarão o cultivo da fidelidade. O que se tem em vista é a edificação de um projeto de vida e a perseverança nele.
4. Fatores que estimulam o crescimento da cultura light na Vida Consagrada
Tende-se a atribuir a responsabilidade pelas manifestações negativas da cultura light ao perfil pessoal dos jovens que ingressam na Vida Religiosa. Ignora-se que há um conjunto de fatores que levam a esta situação. O primeiro deles, sem dúvida, diz respeito a uma crise de sentido na sociedade contemporânea. Basta lembrar a confluência de diversos aspectos, sublinhados por Enrique Rojas, David Harvey, Z. Bauman e outros autores que oferecem algumas chaves de leitura para compreender o mundo atual: materialismo, hedonismo, ética permissiva, relativismo, liquidez das relações e dos compromissos... Somos filhos do nosso tempo, e de certa forma, isso nos influencia a todos, não somente aos jovens. Vejamos então que elementos aparecem na Igreja e na vida consagrada.
a) Fatores eclesiais

Nos últimos anos, um setor crescente da Igreja Católica se posicionou em atitude de luta e de enfrentamento diante da pós-modernidade e da pessoa light. Nele se incluem importantes autoridades eclesiásticas romanas, bispos, padres e religiosos e movimentos de leigos. Em reação ao relativismo, ele propõe a rigidez da doutrina e da moral, sobretudo sexual. Para enfrentar o subjetivismo, fortalece o poder centralizado e a obediência à autoridade. Ignorando a contingência da situação das pessoas, exige a manutenção de compromissos definitivos a qualquer preço. Diante de um mundo que muda com rapidez, refugia-se na solidez das fórmulas, dos ritos e dos símbolos do passado. Ao considerar, de forma geral, as manifestações da modernidade como ameaças para a Igreja, recusa-se a ouvir o clamor de milhões de seres humanos, de distintos grupos étnicos, culturais, sociais e de gênero.
Ao mesmo tempo, esta corrente se apropria de algumas características da pós-modernidade e do homem light. Privilegia a visibilidade da mídia e das grandes 6
manifestações públicas. Favorece a estética e aparência. Difunde uma religião pasteurizada e globalizada. Embarca na teologia do sucesso. Consegue dar uma roupagem nova a ensinamentos anacrônicos, pois a forma se torna o conteúdo.
Esta postura de “evangelização conquistadora” provoca dois movimentos contrários. Afugenta as pessoas light, devido às exigências morais e rituais. No entanto, atrai e alimenta em seu seio um grupo significativo de gente medíocre, acrítica e sem grandes ideais. Desfavorece o diálogo em nome de uma visão equivocada de autoridade, e estimula pessoas conformadas. E, naturalmente, produz o seu reverso: líderes autoritários e inseguros. Gera ainda uns tipos “lights transgênicos”, ou seja, culturalmente modificados. Em parte são light, em parte são rígidos. E as duas matrizes convivem, hora sobrepostas, hora em articulação.
Então, o modelo cristão conquistador enfrenta a questão do homem e da mulher light de forma ambivalente. De um lado, tem uma face exigente e por vezes rígida, que apela ao compromisso e à fidelidade. Apresenta-se com rosto definido, propõe tarefas e objetivos claros, e sustenta verdades indiscutíveis. Isso tudo tem grande poder de fascinar, sobretudo àqueles que estão confusos, inseguros e sem rumo, na cultura light. Por isso, obtém sucesso. E, neste sentido, responde à demanda de um enorme segmento da sociedade atual. De outro lado, esta versão do cristianismo apresenta uma face oculta, que favorece o individualismo e a simulação dos comportamentos. Como há diálogo, os fiéis aceitam aparentemente o que o ensino oficial propõe, mas na sua vida privada agem conforme lhes parece melhor. Ao custo de enorme culpa ou de comportamentos esquizofrênicos.
A Igreja dos pobres e a Teologia da Libertação são um importante fator equilibrador para elementos desumanizantes da cultura light. Ao colocar homens e mulheres em confronto com o mundo dos pobres, ajuda-lhes a ouvir seus clamores, descobrir sua sabedoria e fazer comunidade com eles. Suscita em leigos, presbíteros e consagrados uma grande generosidade e empenho com uma causa que está bem além da subjetividade. Exige reflexão, presença de qualidade, renúncia e compromisso. Rompe assim com o narcisismo e o imediatismo da pessoa light. Estimula a fidelidade e compromisso, a ponto de doar a vida pelo martírio. Ao mesmo tempo, favorece a flexibilidade e a criatividade. Alimenta a esperança em projetos históricos de mudança. De outro lado, investe pouco nas subjetividades e suas demandas. Neste sentido, é pouco atrativo para os filhos da geração light.
A perseguição sistemática às lideranças desta corrente teológica e espiritual golpeou os grandes sonhos de libertação, e freou a edificação de uma Igreja mais participativa e plural. Combateu a utopia, a generosidade, o profetismo e a ousadia que acompanham o compromisso social. Não reconheceu o sacrifício dos nossos mártires. Ao mesmo tempo, favoreceu o desenvolvimento de um cristianismo de massa, voltada para responder somente as carências das subjetividades. Sem ter consciência disso, acabou favorecendo o crescimento da cultura light na sociedade e na Igreja.
b) Na Vida Consagrada

Nos Institutos de Vida Consagrada, a cultura light não existe quimicamente pura. Ela está mesclada com os comportamentos anteriores ao Vaticano II, centrados na observância da regra, na regularidade, na constância e na uniformidade. Nos institutos coexistem as correntes modernas que valorizam o indivíduo e uma minoria significativa, comprometida com os excluídos. Há gente que cria sua esfera, para se 7
proteger de qualquer mudança. Outros dialogam com o mundo contemporâneo. E há aqueles(as) que se mundanizam e perdem lentamente o fermento evangélico.
Como as instituições religiosas favorecem podem favorecer desenvolvimento da cultura light? Resumidamente, apontamos os seguintes fatores:
*O poder da gerontocracia: as gerações mais velhas não criam um processo de preparação, para que as novas gerações assumam responsabilidades desde cedo. Favorecem assim o infantilismo e ajudam a prolongar a síndrome da adolescência light.
*O estilo de vida fácil caracteriza alguns institutos, especialmente masculinos. As pessoas não sabem o valor das coisas e não tem parâmetros para avaliar seus gastos. Têm acesso ao dinheiro com certa facilidade, trabalhando ou não. Com tamanha facilidade, está aberta a porta para o consumismo. Desgraçadamente, muitas jovens vocações advindas das classes populares, habituadas ao trabalho duro e à luta pela sobrevivência, aprendem o que é a vida light quando entram na Vida Religiosa. E, como é tão prazeroso e seguro, não querem se desfazer dela....
*Dificuldade de recriar a formação em novos moldes. Os formandos passam um longo período de vida numa redoma de plástico, protegidos dos desafios reais. Ao mesmo tempo, através da TV, da Internet e de outros meios, estão sendo assediados pela cultura light. Por vezes, não há formadores(as) que tenham uma visão diferente e queiram arriscar uma formação diferente. Em algumas congregações, os primeiros testemunhos da cultura light são os próprios formadores. Manter os formandos trancados dentro de casa não lhes protege da cultura light. Jogá-los de qualquer forma nos contatos externos, também não. Trata-se de equilibrar a proteção (para favorecer a formação da identidade do religioso consagrado) com o risco (para lançar-lhes desafios reais).
*O perfil atual de algumas congregações e a imagem que veiculam ocasionam uma seleção prévia na pastoral vocacional. Poucos jovens que ainda nutrem sonhos e projetos ousados entram num instituto que tem peso institucional muito grande. Alguns preferem os novos movimentos, que, apesar da ideologia conservadora, envolvem mais seus membros em grandes causas comuns, alimentam uma mística encharcada de emoção e expressam o predomínio do carisma sobre as estruturas.
* Por fim, há a questão real da qualidade das vocações que entram na vida consagrada e estão na formação inicial. Sem dúvida, as pessoas são frágeis, com valores pouco consolidados, apresentam uma situação familiar complexa e têm sonhos curtos.
5. Como formar para a fidelidade?
Apresentaremos alguns breves pontos, para que os consagrados(as) e suas comunidades reflitam e os confrontem com sua própria realidade.
a) “Formar para a fidelidade” significa, fundamentalmente, acompanhar as pessoas no seu peregrinar humano e espiritual. Neste processo de, leva-se em conta suas potencialidades e fragilidades. Abordam-se as características da cultura light, se estas estiverem presentes. Ao mesmo tempo, oferece-lhes o desafio de dar um passo a mais, de crescer e de expandir suas capacidades.
b) Hoje em dia, dificilmente alguém pode afirmar com total certeza que será fiel à sua opção existencial, até a morte. Não há garantia de que alguém será fiel à sua vocação porque se casou na igreja, foi ordenado ou fez os votos perpétuos. Importante é que a pessoa envide todos os esforços para ser fiel ao seu coração, e mantenha acesa a chama do amor que a moveu o tomar determinado caminho de vida. Isso vale para as clássicas vocações na Igreja (matrimônio, vida consagrada e ministério ordenado), como
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também para outras escolhas importantes. As opções somente se conservam se são renovadas e recriadas. Aprende-se com as crises e as conquistas, os momentos difíceis e os alegres. A fidelidade não é algo conquistado de forma definitiva, e sim um caminho que se faz ao caminhar.
c) Há uma crise da fidelidade na meia idade, por volta dos 40 anos, de natureza sobretudo existencial, que não tem a ver necessariamente com a cultura light. Quem a supera, amadurece na fidelidade.
d) Em algumas congregações, o que corrói a fidelidade não é a cultura light, e sim a cultura “hard” (dura) e “heavy” (pesada), ou seja, estruturas desumanizantes, controle excessivo sobre as pessoas, exercício autoritário da obediência, enorme desgaste devido a relações contaminadas por inveja e maledicência. Então, há gente que pensa em deixar a Vida Consagrada porque simplesmente quer viver com mais leveza. Isso nos estimula a recriar um estilo de vida mais humano e saudável nas nossas comunidades e nos Institutos, em coerência com o seguimento radical de Jesus.
e) Cada pessoa, com o apoio de seu instituto, deve investir no autoconhecimento. As práticas de relação de ajuda, de acompanhamento pessoal e grupal, bem como a psicoterapia são úteis para que cada um assuma sua história de vida e se torne protagonista de sua existência. O autoconhecimento pode ajudar a superar alguns limites da cultura light, pois há elementos culturais que são acentuados ou atenuados, dependendo das posturas individuais. Por exemplo, um comportamento narcisista pode ser a conjugação de fatores culturais, psicológicos e espirituais. Quando a pessoa se conhece e está sintonizada no Bem, deseja superar as posturas egocêntricas e se abre aos outros.
f) A geração light ocupa-se com o presente. Deve-se ajudar a transmutar esta característica, a ponto de ela contribuir num processo de crescimento humano e espiritual. Viver o hoje, sim! Mas não de maneira superficial. Trata-se de viver o cotidiano com intensidade e sabor, ajudando as pessoas a pensar sobre os acontecimentos e a celebrar as pequenas conquistas. A consciência cresce quando as pessoas conseguem narrar e partilhar sentimentos e percepções daquilo que estão vivenciando. E então, lentamente, gestam sonhos e nutrem esperanças.
g) As novas gerações aparentemente têm uma identidade pessoal e religiosa débil. Demoram mais tempo para estruturar seus valores. Por isso, necessitam de pessoas de referência, com personalidade marcante e grande ideal de vida. Valores não se aprendem a partir de aulas teóricas de formação, mas sim com testemunho de vida, reconhecido e aceito como tal. Por isso, os jovens devem estar cercados de leigos e de consagrados, de diferentes faixas etárias, que sinalizem os valores do seguimento de Jesus. Ambas as presenças (de consagrados e de leigos) são importantes, pois questionam a falta de sabor do light, estimulam as pessoas a saírem da mesmice e serem “mais”.
h) Para fortalecer a fidelidade, em um projeto de vida de qualidade, os consagrados de qualquer faixa etária (não somente os mais jovens) buscam pequenos grupos de partilha. Isso deve ser reconhecido e estimulado. Por vezes, são alguns coirmãos da mesma congregação. Em outras ocasiões, serão irmãs e irmãos de outros institutos, que nutrem sonhos e ideais exigentes e lhes fazem crer que vale a pena lutar pela renovação da Vida Consagrada.
i) Diante da tendência à facilidade, à comodidade e ao consumismo, que caracteriza a geração light, é preciso oferecer oportunidades de presença e missão junto
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aos pobres e excluídos, que tenham certa dose de radicalidade. Essas podem ser temporárias ou permanentes, durante o ano ou no período de férias. Sem dúvida, conviver com os mais pobres, ver seu sofrimento e ouvir seus clamores, ajuda as pessoas a desmascarar o lado ideológico e excludente da cultura light e a alimentar o desejo de dedicar a vida pela promoção da “Vida em Plenitude”. Da paixão e da compaixão com os pobres brotam energias que promovem e sustentam a fidelidade.
j) Ninguém deve buscar o sofrimento, mas um ser humano adulto está disposto a pagar o preço de suas opções. A superação de certos limites da cultura light só será possível quando as pessoas estiverem convictas que a vida não é somente a soma de momentos alegres e descomprometidos. Quem faz somente o que quer, sem empenho, não chega a lugar nenhum. Para realizar qualquer coisa consistente e duradoura, é necessário metodologia, disciplina e concentração. Então, educar para a fidelidade exige o exercício da disciplina e do método.
k) Por fim, há um elemento imprescindível em todo o processo de “redenção” e “integração” da cultura light: a espiritualidade. O misticismo baseado na emoção, no show ou no ritualismo não é ruim, pois muitas vezes faz parte dos primeiros passos da vida espiritual da pessoa light. Mas em longo prazo se mostra insuficiente. É preciso ir além. O peregrino na fé não se contenta com a pequena luz de sua subjetividade ou com a emoção passageira. Cultiva a intimidade com a Palavra, refazendo na sua vida a caminhada do Povo de Deus. Vai ao encontro do Deus Trindade, luz das Luzes, sopro que sustenta toda leveza. Não importa se ele(a) não tem a certeza da fidelidade. Também experimenta na sua fragilidade a grandeza e a misericórdia de Deus. Assim, poderá proclamar com alegria: “Felizes os que perseveram!” (Tg 5,11).

(Ir. Afonso Murad, marista, professor de teologia e membro da equipe teológica da CRB)
 


APÓSTOLO PAULO: UM ESTILO DE VIDA À SERVIÇO DA EVANGELIZAÇÃO



Pe. Valdir José de Castro, ssp


O mês de junho, particularmente para nós, membros da Família Paulina, é dedicado ao apóstolo Paulo. Pe. Alberione sempre insistiu que São Paulo é o discípulo que soube viver Cristo de maneira integral, de modo a tornar-se importante referência no caminho de santidade. Em outras palavras, afirma o Fundador que “seremos santos à medida que vivermos a vida de Jesus Cristo; ou melhor, à medida que Cristo viver em nós: ‘O cristão é outro Cristo’; é o que são Paulo afirma de si mesmo: ‘Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’” (CISP 11-12).



Tendo presente que “a Família Paulina aspira a viver integralmente o Evangelho de Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, no espírito de são Paulo” (AD 63-64), a proposta desse retiro é refletir a espiritualidade cristã como um “estilo de vida”, da maneira como são Paulo viveu. 

Os membros dos Institutos Paulinos, como parte da Família Paulina, são chamados a assumir este espírito nas realidades familiares, paroquiais, profissionais e no contexto da cultura da comunicação. 

1. Espiritualidade cristã como um estilo de vida

A espiritualidade cristã tem em Jesus Cristo a primeira referência, cuja missão foi a de anunciar o Reino de Deus. Jesus revelou um projeto de vida que, no decorrer da história, foi assumido por homens e mulheres que acolheram a sua mensagem e fizeram dos valores que ele anunciou, um modo de ser.

Jesus revelou o rosto de Deus de uma forma profundamente humana, aproximando-O das pessoas. Anunciou que Deus é Pai, que ama indistintamente os seres humanos, que acolhe e que perdoa a todos os que se aproximam dele com o coração arrependido. 

A Boa Notícia que Jesus anunciou, e que está na base da construção do “Reino de Deus”, não se refere a um conjunto de meras informações, mas de atos concretos em favor das pessoas, de modo especial, das que sofrem. A Boa Notícia de Jesus dava a cura ao doente; o perdão ao pecador; o pão ao faminto, a esperança ao que havia perdido o sentido da vida; a libertação ao que estava atormentado.

A espiritualidade de Jesus consistia num “modo de ser” voltado à vida e à libertação das pessoas inseridas nas realidades concretas da sociedade. Ele mesmo definiu o programa de sua atividade quando afirmou: “o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos...” (Lc 4,18-19).

No contato com as pessoas, Jesus frequentemente usava palavras simples e histórias do cotidiano para expressar verdades profundas. Não só as suas palavras, mas também as suas obras, especialmente os seus milagres, eram atos de comunicação, que revelavam a sua identidade e manifestavam o poder de Deus. Nas suas comunicações, demonstrava respeito pelos seus ouvintes, atenção pela sua condição e necessidades, compaixão pelos seus sofrimentos e determinação decidida em dizer-lhes o que eles precisavam ouvir.

As palavras e as atividades de Jesus partiam de um único movente: o amor. Defendia que a vida ganha sentido quando há amor. Por isso deixou um mandamento insubstituível aos seus discípulos: “amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês”. E determinou a sua extensão: “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 14,12-13). Sua ordem era amar sem limites. 

Sem a compreensão deste mandamento central e sem entrar nesta lógica, é impossível compreender porque Jesus insistiu no amor aos inimigos, porque falou em perdoar sempre, porque afirmou que é necessário dar sem esperar retribuição, porque pediu para não julgar as pessoas. Sem entrar na lógica do amor é impossível entender porque, para Deus, cada pessoa é importante e porque Ele dá atenção a todos, especialmente aos mais necessitados. Na verdade, Jesus ensinou que a lógica de Deus nem sempre coincide com a lógica dos homens. 

Jesus mesmo definiu o objetivo de sua missão: “Eu vim para que todos tenham vida, e tenham vida em abundância” (Jo 10,10). Levou este compromisso até a entrega da própria vida, numa cruz, consequência de sua fidelidade ao projeto que Deus Pai lhe confiou. No entanto, sua vida não terminou no madeiro. Pela ressurreição, continuou e prossegue presente na história, na vida de todos os que se abrem ao seu Espírito e à sua mensagem. 

Para refletir:

a. O que entendemos por “espiritualidade cristã” como “estilo de vida”?

b. Qual foi o programa da atividade de Jesus?

c. Quais as dificuldades que o cristão “consagrado” encontra, hoje, para viver concretamente a espiritualidade cristã? Como superá-las?

2. O estilo de vida de Paulo de Tarso

Nos últimos dois mil anos de história, muitas pessoas fizeram da espiritualidade cristã um estilo de vida. Dentre essas, está o judeu Paulo de Tarso que, num determinado momento de sua vida, encontrou a razão da sua existência no seguimento de Jesus. Abraçou livremente o cristianismo, não como forma de entrar em “realidades espirituais”, para fugir dos problemas concretos, mas, pelo contrário, para buscar na mensagem de Jesus respostas às situações reais de pessoas e comunidades.

Uma oportunidade apareceu em sua vida e Paulo deu um novo sentido à sua história. Abraçou o cristianismo como um “modo de ser”, jamais como um conjunto de leis frias a serem cumpridas. Assumiu uma missão impulsionada por uma paixão indescritível pela pessoa e mensagem de Jesus. Arrastou consigo pessoas. Viveu uma espiritualidade profunda que deu sentido ao seu modo de ser e de agir, muito válida também para os dias de hoje. 

Nascido em Tarso, capital da Cilícia, na Ásia Menor, entre os anos 5 e 10 da era cristã, Paulo recebeu o influxo de duas culturas: a judia e a helenista. Por raça e religião, era de origem judaica, porém, pertencia à comunidade da diáspora, ou seja, dos judeus que viviam fora da Palestina e que estavam em contato com o ambiente grego do qual assumiu a língua e muitos elementos que marcaram sua vida e seu pensamento.

Antes de abraçar o cristianismo, Paulo era um fanático partidário das tradições do povo judeu. Era irrepreensível no cumprimento da Lei. Foi educado em Jerusalém por Gamaliel, um dos grandes rabinos de seu tempo. Devido à sua sólida formação judaica, era um forte adversário de Jesus Cristo e de seus discípulos. Chegou a assistir o apedrejamento de Estevão, o primeiro mártir cristão. 

Por volta do ano 36 da era cristã, Paulo passou por uma profunda transformação. Teve um encontro inusitado que o fez mudar o rumo de sua vida e que o orientou a um novo projeto. Enquanto seguia em direção à cidade de Damasco para fazer prisioneiros os seguidores de Cristo, fez uma experiência extraordinária de encontro com Jesus Ressuscitado que produziu uma mudança radical em sua história. Paulo entendeu essa experiência como fruto da “graça” (bondade!) de Deus. Ele mesmo dirá: “Deus, porém, me escolheu antes de eu nascer e me chamou por sua graça. Quando ele resolveu revelar em mim o seu Filho, para que eu o anunciasse entre os pagãos...” (Gl 1,15-16). De perseguidor, Paulo passou a ser um dos maiores seguidores de Jesus. 

A mudança pela qual Paulo passou foi tão radical a ponto de colocar em segundo plano tudo o que havia aprendido até então. Sentiu-se tão “apóstolo”, ou “chamado”, como todos os outros apóstolos que haviam conhecido pessoalmente Jesus. Paulo teve que rever muitas de suas concepções sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo. Não considerava o cristianismo uma nova religião, distinta do judaísmo, mas uma continuação, ao qual deviam ser agregados novos elementos. Por isso, mais que considerar um episódio de conversão, convém entender a mudança que ocorreu na sua vida como um episódio de vocação, que o levou a dizer “sim” a um projeto de vida e santidade fundamentado em Jesus de Nazaré. 

Na experiência do caminho de Damasco, Paulo fez uma pergunta fundamental: “Senhor, que queres que eu faça?” Com o tempo, Jesus foi lhe dizendo o que devia fazer. E respondendo aos apelos de Jesus, Paulo tornou-se um incansável anunciador do evangelho, não somente com palavras, mas com o testemunho da própria vida. Priorizou os pagãos, justamente as pessoas que ele antes discriminava. Passou a ser um “construtor” e “formador” de comunidades. Fez quatro viagens cheias de perigo, se levamos em consideração as condições de segurança da época. Visitou inúmeras cidades. A última de suas viagens foi de Jerusalém a Roma, na qual sofreu o martírio. Escreveu cartas que se tornaram, para nós, testemunho do seu apostolado. Nelas encontramos traços importantes para quem quer fazer da espiritualidade cristã um “estilo de vida”. 

Para refletir:

a. Que significado teve a “conversão” na vida de Paulo? O que isso tem a nos dizer?

b. Para nós, membros da Família Paulina, as Cartas de Paulo fazem parte das fontes da espiritualidade que alimentam nossa missão, conforme insistiu Pe. Alberione. Quais as características do “estilo paulino” de seguir Jesus? Como as colocamos em prática no nosso cotidiano?

3. Comunicação: experiência humana e cristã fundamental

O tema da espiritualidade cristã leva-nos a refletir uma importante dimensão do “modo de ser cristão” (especialmente para nós, membros da Família Paulina!), que é a comunicação, pois, antes de tudo, “evangelizar” é “comunicar”. O apóstolo Paulo, que assumiu a espiritualidade cristã como um “estilo de vida”, mostra, com seu testemunho, que sem comunicação não há vida espiritual, não há revelação de Deus, não há abertura do homem a Deus, não há relações humanas com qualidade.

Hoje, o termo “comunicação” tem uma ampla abrangência, que vai desde o que diz respeito às relações interpessoais diretas até o que se refere à comunicação mediada pelos instrumentos técnicos. Todas as formas de comunicação convergem para a finalidade de aproximar pessoas e de reduzir distâncias e tempo. Dentre as invenções que marcaram o âmbito da comunicação midiática, nas últimas décadas, podemos destacar a imprensa, o rádio, o cinema, a televisão e a Internet.

Porém, o que é “comunicar”? Lembremos que o significado de “comunicação” está no próprio termo. O primeiro sentido, provindo do latim, remonta ao século XII (1160) e remete à ideia de comunhão, de partilha. A comunicação é sempre a busca do outro e de um compartilhar. Somente no século XVI é que passou a ser entendida como “difusão” de ideias desenvolvidas de várias formas, com o auxílio dos meios técnicos de comunicação. 

Quando o assunto é comunicação ligada à espiritualidade ou à evangelização, o apóstolo Paulo é uma referência importante. Isto acontece porque ele não mediu esforços em interagir com as pessoas do seu tempo, fazendo da “comunicação” um caminho fundamental para gerar “comunhão”. Primou pelo uso dos meios de comunicação disponíveis na sua época, sem desprezar o contato direto com as pessoas. A desenvoltura na comunicação certamente teve como motivação a experiência de Jesus Cristo, a paixão pelo Evangelho e o amor ao povo ao qual se sentia chamado a anunciar. 

A comunicação, em Paulo, perpassou todos os aspectos de sua vida: o conhecimento de si mesmo e a relação com Jesus Cristo, o trabalho de evangelização, os contatos pessoais e com as comunidades. Com seu testemunho mostrou que a comunicação é uma atitude humana e cristã fundamental e que a sua antropologia não é uma forma de individualismo. As pessoas são seres sociais, definidas como pessoas pelos seus relacionamentos. Com sua atitude mostrou que sem comunicação não há espiritualidade, não há relação humana com qualidade, não há encarnação da Palavra de Deus na realidade concreta. Para ele, “comunicação”, “espiritualidade” e “comunhão” são realidades que se entrelaçam.

Hoje, os meios de comunicação fazem parte da cultura em que vivemos e geram a explosão de criatividade que leva informação para todos os cantos do planeta. Porém, não podemos nos esquecer de que a comunicação é, antes de tudo, uma experiência humana fundamental e que, não obstante os meios técnicos tenham se desenvolvido de forma extraordinária, não melhoraram a qualidade da comunicação. Numa época marcada pela instrumentalização técnica e digitalizada, o contato direto entre as pessoas, que se expressa no “diálogo”, segue como um desafio. 

Tanto no passado como no presente, a comunicação continua a ser um objetivo importante. É uma das necessidades básicas do ser humano. É por meio da comunicação verbal e não-verbal que as pessoas interagem entre si e constroem a sociedade e também a Igreja. Assim como não existem homens sem sociedade, também não existe sociedade sem comunicação. É o fio condutor que perpassa pessoas, grupos sociais e instituições e possibilita a construção do que chamamos cultura. Está na raiz da busca de sentido e da espiritualidade cristã como “estilo de vida”.

Para refletir:

a. O que entendemos por “comunicação”? O que tem a ver “comunicação” com “comunhão”? O que isso diz para nós, membros da Família Paulina?
b. Por que a comunicação é importante na vida cristã? Como Paulo a viveu? 
c. Como situamos a comunicação interpessoal no contexto da cultura dominada pelos meios técnicos de comunicação? 


A MISSÃO SOCIAL DA FAMÍLIA PAULINA




1. Ao traçar o memorial de sua vida e fundações, no escrito conhecido como “Abundantes divitiae gratiae suae”, o Pe. Alberione  dedica um capítulo ao “Espírito Social” (AD 58-63). Em poucas linhas resume as tendências sociais presentes na sociedade e na Igreja durante o período de sua formação e primeiros anos de ministério na diocese de Alba. Encerrando este breve capítulo condensa em poucas linhas a descrição da missão social da Família Paulina:
“Ação e oração orientaram um trabalho social cristão que tende ao saneamento de Governos, de escolas, de leis, da família, as relações entre as classes, e internacionais. Para que o Cristo, Caminho, Verdade e Vida reine no mundo. A Família Paulina tem grande tarefa e responsabilidade” (AD 63).
2. Nos primeiros anos das fundações Pe. Alberione queria de todos os sacerdotes paulinos se formassem em sociologia. Provavelmente a dominação do regime fascista na Itália contribuiu para impedir a realização deste ideal. Logo após a segunda guerra mundial e a queda do fascismo, Pe. Alberione notou quantos estragos este regime havia causado na consciência social da sociedade italiana e quis oferecer uma contribuição para renová-la mediante o livrinho “Elementos de Sociologia”, chamado depois de “Catecismo social”.
3. Quando a Família Paulina estava chegando dedicou uma série de artigos a temas importantes da vida paulina, tais como a Providência nas Famílias Paulinas (1953), a formação humana (1953), o trabalho nas Famílias Paulinas (1954), levai Deus no vosso corpo (1954) amar o Senhor com toda a mente (1954) e, para o tema que estamos considerando, sete artigos sobre a formação de uma consciência social. Todos estes artigos foram mais recentemente reunidos em um livro que tem por título Alma e corpo para o Evangelho, que brevemente vai ser publicado também no Brasil.
4. Dos artigos sobre a formação da consciência social foi compilada a breve antologia de textos aqui apresentada, que poderá ajudar a refletir sobre a missão social da Família Paulina.
5. Princípios
SP, novembro de 1953, p. 1
“1) Amar a Deus com toda a mente, as forças e o coração: é o primeiro e principal preceito. Mas há um segundo, que é semelhante a este: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E Jesus nos propõe, como verdadeiro amante do próximo, um Samaritano, que não era hebreu, mas um “alienígena”.
2) A educação consiste em acostumar o jovem a usar para o bem a sua liberdade; e deste uso ele prestará contas a Deus para receber o prêmio ou o castigo. A nossa vida não é destinada a ser um peso para muitos e uma festa para poucos; mas, para todos, é uma ocupação, para o próprio aperfeiçoamento e para a utilidade do próximo; por isso, a sociabilidade.
3) O homem é naturalmente ordenado por Deus a viver em sociedade. Com efeito, não poderia viver no isolamento, já que sozinho não é capaz de alcançar o seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual. Deus deu ao homem a inclinação a superar a sua insuficiência associando-se aos outros, seja na vida doméstica quanto na vida civil e religiosa. E este é um direito natural, que ninguém pode violar.
4) A sociedade em geral é um conjunto de indivíduos, considerados no seu grau social, unidos por um objetivo comum, a ser alcançado com a união das forças, sob o governo de uma legítima autoridade. É uma unidade orgânica (não mecânica) amadurecida pela razão e pela fé; crescida sob o governo da Providência para o bem de cada um” (p. 101).
6. Estudo da sociologia
“Hoje, mais do que nos tempos passados, é preciso um estudo suficiente da sociologia. A nossa vida se desenvolve em sua maior parte na sociedade; e é na sociedade que se deve exercer o apostolado e santificar as relações.
A sociabilidade quer uma convivência serena; mas ao mesmo tempo quer uma convivência benéfica e apostólica, também na mais ampla família humana. “Chamou-nos não só dentre os judeus, mas também dentre os pagãos” (Rm 9,24” (p. 101).
7. Dupla categoria de sociedade
“Tendo o homem que conseguir um duplo aperfeiçoamento, natural e sobrenatural, há uma dupla categoria de sociedade: sociedade de ordem | natural e sociedade de ordem sobrenatural. À primeira pertencem a sociedade doméstica, a sociedade civil etc.; à segunda: a Igreja, os Institutos religiosos etc.
Com o nascimento, o homem adquire o direito de entrar para fazer parte das sociedades naturais; com o segundo nascimento, que acontece no batismo, adquire o direito de entrar em sociedades sobrenaturais quanto ao fim e aos meios.
A Igreja é sociedade sobrenatural quanto ao fim, que é a eterna beatitude; e quanto aos meios, que são: a fé, os sacramentos, as virtudes cristãs; a obediência aos Pastores, de modo particular ao Papa” (p. 102).
8. Fundamento natural
“Quem quer entrar no Instituto deve ter um caráter sociável. Acima já foi dito que “a vida comunitária supõe:
– um caráter doce, sociável, otimista: em parte por natureza, em parte por educação;
– uma mente larga, cuidadosa, compreensiva, inclinada a interpretar favoravelmente;
– uma disposição reta pelos pobres, pelos sofredores, pelos superiores, pelos inferiores;
– a observância das regras de cortesia, boas maneiras, submissão, gentileza; em todo lugar, mas especialmente estando em companhia;
– a disposição para perdoar os erros e os males e para lembrar os benefícios recebidos; sem escancarar culpas, humilhar o inferior etc.;
– ser sempre iguais e simples, sem orgulho na sorte e na honra; mas sem abatimento nas contradições” (pp. 103-104)
9. Fundamento sobrenatural
“A sociabilidade, como toda verdadeira virtude e toda verdadeira piedade, fundamenta-se sobre a fé.
Pela fé vemos, em todos os homens, filhos de Deus e Irmãos no “Pai-nosso”.
Pela fé vemos, em todos, almas às quais somos devedores de verdade, de edificação, de oração.
Pela fé vemos como Jesus Cristo amou todos, ainda mais os necessitados, os pecadores, os sofredores. Ele não fez distinção de caráter puramente humano; mas só de caráter humano-divino.
Pela fé teremos um nacionalismo justo, veremos sempre na nação particularmente as almas e a sua salvação; nunca um nacionalismo de inspiração contrária ao Evangelho, e de caráter político ou econômico. Espera-se que tudo seja conforme às doutrinas pontifícias: leis, ensinamento, moral, prática da religião.
Pela fé veremos nos membros do Instituto Irmãos, tornados tais pelo título novo da profissão.
Pela fé os homens são vistos como companheiros de viagem rumo à eternidade, disso decorrendo os deveres de mútua ajuda.
Pela fé se compreendem: o Coração do Divino Mestre, que prega e chama todos os homens a si: “Vinde todos a mim”; São Paulo “doutor dos gentios”, que em seu dilatado coração levava todos os homens; a Regina Apostolorum que [é] guia para todos os filhos do Pai Celeste, missionários, pregadores, apóstolos” (pp. 104-105).
10. Ut unum sint
“A caridade na Igreja regula a sua ação social.
A caridade é o princípio, o movente, o elemento determinante dos Cânones e de toda disposição emanada pela Igreja e por qualquer autoridade eclesiástica e religiosa. Porque Pedro amou “mais do que estes” [Jo 21,15] é que recebeu o encargo de governar e dispor para toda a Igreja. E na Igreja não há poder a não ser o de Jesus Cristo, exercido pelo seu Vigário na terra.
Assim a caridade conduz a uma interpretação reta daquilo que é prescrito; e igualmente a caridade conduz à execução santa, envolvendo todo o nosso ser: mente, forças e coração.
As nossas Congregações são bem distintas em seus fins e em seus meios; sempre há, no entanto, um terreno de confim que não pode ser especificado em milímetros, precisamente porque todas as quatro servem e operam na Igreja e para a Igreja.
A caridade, portanto, supra aquilo que as Constituições não podem especificar. [...]Encontrar-se, ouvir-se, considerar-se mutuamente, além da reta intenção, serão modos de entendimento, de paz, de maior fruto.
Foi um bom pároco da região de Alba que deu de presente à San Paolo o nosso segundo cálice; disse, ofertando-o: “Observa o que mandei gravar na base: Ut unum sint; são as palavras do Mestre Divino, e será sempre esta união entre vós que permitirá o desenvolvimento do Instituto, a paz e o fervor de cada um”. De fato, é na oração sacerdotal que Jesus, por quatro vezes, pediu ao Pai esta unidade primeiro entre os Apóstolos, depois dos fiéis entre si e com a Hierarquia eclesiástica:
– “Pai santo... que sejam um, como nós também somos um”.
– “...Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti, para que eles também em nós sejam um”.
– “...Que sejam um, como também nós somos um”.
– “Eu neles, e tu em mim: para que sejam perfeitos na unidade” (Jo 17,11.21.22.23)
(pp. 113-114).
10. As aspirações do mundo a uma sociedade das nações
“Se as aspirações do mundo por uma sociedade das nações, hoje ONU (Organização das Nações Unidas), se realizassem, se realizariam também os desígnios de Deus Pai e Criador, de Jesus Cristo Mestre, da Igreja católica, de São Paulo Apóstolo: “Venha o teu reino”; um o Mestre, uma a escola, um o ensinamento, um o fruto a ser amadurecido. Por isso foi composto o livrinho “Principi di Sociologia”, que deve ser estudado em todas as nossas casas, como se estuda o catecismo da classe superior.
Superadas por Jesus Cristo as barreiras de um nacionalismo religioso-civil do povo hebreu, que tinha uma missão especial e limitada, Cristo mesmo intimou: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura” [cf. Mc 16,15]. O Pai Celeste disse ao seu Filho: “Te darei em possesso as nações” [Sl 2,8], todas as nações do mundo; e a Igreja, seu Corpo místico, teve uma herança universal, com um direito e um dever em relação a toda a humanidade. E São Paulo mostrou esse direito e esse dever; e o Concílio de Jerusalém, com homens fortes que nunca mais haverá, isto é, os genuínos, os diretos representantes do pensamento de Jesus Cristo, os Apóstolos: foi o Concílio da universalidade. Os paulinos devem recolher esta preciosíssima herança do seu Pai, Mestre e Doutor: coração, aspirações, apostolado sem confins.
* * *
As sociedades particulares e cada uma das nações são torrentes de um grande rio que é a humanidade; o Evangelho não é só sobrenatural, mas é supranacional; este não tem a limitação que se fecha com a vinda da plenitude dos tempos, mas tem por único confim o epílogo da história e da eternidade. “Portanto, não há diferença entre Judeu e Grego: todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que o invocam” (Rm 10,12).
Pensamento, sentimento, aspiração de um verdadeiro paulino refletem esta sobrenaturalidade e supratemporalidade (sit venia verbis): não ao restrito ambiente familiar, diocesano, ou ao terreno onde está estabelecida a hierarquia eclesiástica, bem como aos já conquistados a Cristo. Adiante! Sempre mais adiante! Tendo por base o fundamento dos Apóstolos, e a mesma pedra angular Cristo Jesus, o salto será seguro. Medir a altura e a profundidade, o comprimento e a largura da missão.
A Santa Missa é a oração da universalidade e da unidade ao mesmo tempo; é a oração coletiva e social. A unidade se forma em Cristo: uma a fé, uma a vida, uma a graça, um o rebanho, um o Pastor, um o Paraíso. O vinho que é consagrado é fruto de muitos bagos, e o pão que é transubstanciado é fruto de muitos grãos. Todos juntos oferecemos, “per ipsum et cum ipso e in ipso” por meio do celebrante, o sacrifício da cruz. Cada manhã, mesmo espalhados por tantos pontos da terra, estamos unidos na mesma ação, a maior: um o Sacerdote, uma a vítima, idênticos os frutos; um o viático para a jornada, do qual cada um pode se servir: “Para que não desfaleçam pelo caminho” [cf. Mt 15,32]. A universalidade: a Igreja, antes de cumprir-se a ação sacrifical, recolhe espiritualmente ao redor do altar a multidão dos homens: “Todos os circunstantes”, e convoca o paraíso todo: “em comunhão...”. É a imolação do Cristo mediador; nele se unem céu e terra; nele vivem todos os membros do corpo místico. Ouvir a Missa com consciência social é transformá-la no mais vivo apostolado.
* * *
A sociabilidade é, portanto, virtude de todos e para com todos. Esta é particularmente necessária a quem vive em comunidade; mas possui também um campo larguíssimo, tão largo quanto o nosso apostolado, tão largo quanto a nação, tão largo quanto estendida é a Igreja, tão largo quanto numerosa é a humanidade, hoje calculada em dois bilhões e meio de homens. (pp. 118-120)
Anotações de Pe. Antonio F. da Silva, ssp





 [1] Os textos são tomados do livro de próxima publicação: T. Alberione, Alma e corpo para o Evangelho
 [2] Alienígena: literalmente, gerado em outro lugar, estrangeiro.
 [3] Cf. Formazione umana, n. 4, p. 123.
 [4] No original: “Venite ad me omnes” (Mt 11,28).
 [5] No original: “Doctor gentium” (1Tm 2,7).
[6] Este texto (até o título “Relações na nação”) foi acrescentado no livrinho Alle Famiglie Paoline.
 [7] “San Paolo”, aqui, está para “Pia Sociedade São Paulo”.
 [8] Trata-se do livro já citado: Elementi di Sociologia (1950) ou Catechismo sociale (1985).
 [9] Dito atual: com o perdão da expressão.
 [10] Versão CNBB da epíclese eucarística: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo”.
[11] Referência ao Cânone romano, no “Memento” dos vivos: “Em comunhão com toda a Igreja...”.
[12]  Esta cifra se refere a novembro de 1953, hoje mais do que duplicada.




CHAMADOS À SANTIDADE





Catequese do Papa - 13 de abril de 2011
Nas audiências gerais dos últimos dois anos, estivemos na companhia de muitos santos e santas: aprendemos a conhecê-los de perto e a entender que toda a história da Igreja está marcada por esses homens e mulheres que, com sua fé, seu amor, sua vida, foram luz para muitas gerações, e o são também para nós. Os santos manifestam de muitas maneiras a presença poderosa e transformadora do Ressuscitado; deixaram que Cristo possuísse tão plenamente suas vidas, que podiam afirmar, como São Paulo: “Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Seguir seu exemplo, recorrer à sua intercessão, entrar em comunhão com eles “nos une a Cristo, de quem procedem, como de fonte e cabeça, toda a graça e a própria vida do Povo de Deus” (Lumen Gentium, 50). No final deste ciclo de catequeses, eu gostaria de oferecer algumas ideias sobre o que é a santidade.
    O que significa ser santo? Quem é chamado a ser santo? As pessoas geralmente pensam que a santidade é meta reservada a uns poucos escolhidos. São Paulo, no entanto, fala do grande projeto de Deus e diz: “Nele (Cristo), Deus nos escolheu, antes da fundação do mundo, para sermos santos e íntegros diante dele, no amor” (Ef 1,4). E fala de todos nós. No centro do desígnio divino está Cristo, em quem Deus mostra seu Rosto: o Mistério escondido nos séculos se revelou na plenitude do Verbo feito carne. E Paulo diz depois: “Pois Deus quis fazer habitar nele toda a plenitude” (Cl 1,19). Em Cristo, o Deus vivo se tornou próximo, visível, audível, tangível, de maneira que todos pudessem receber a plenitude de graça e de verdade (cf. Jo 1,14-16). Portanto, toda a existência cristã conhece uma única lei suprema, que Paulo expressa na fórmula que aparece em todos os seus escritos: em Cristo Jesus.
A santidade, a plenitude da vida cristã, não consiste em realizar empresas extraordinárias, mas na união com Cristo, na vivência dos seus mistérios, fazendo nossas as suas atitudes, pensamentos, comportamentos. A medida da santidade é dada pela altura da santidade que Cristo alcança em nós, daquilo que, com o poder do Espírito Santo, modelamos da nossa vida segundo a sua. É configurar-nos segundo Jesus, como diz São Paulo: “Pois aos que ele conheceu desde sempre, também os predestinou a se configurarem com a imagem de seu Filho” (Rm 8,29). E Santo Agostinho exclama: “Viva será minha vida repleta de ti” (Confissões, 10,28). O Concílio Vaticano II, na constituição sobre a Igreja, fala com clareza do chamado universal à santidade, afirmando que ninguém está excluído: “Nos vários gêneros e ocupações da vida, é sempre a mesma a santidade que é cultivada por aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus (...). Seguem a Cristo pobre, humilde e levando a cruz, a fim de merecerem ser participantes da sua glória” (n. 41).
    Resta a pergunta: Como podemos trilhar o caminho da santidade, responder a esse chamado? Posso fazer isso com as minhas forças? A resposta é clara: uma vida santa não é primariamente o resultado dos nossos esforços, das nossas ações, porque é Deus, três vezes Santo (cf. Is 6, 3), que nos torna santos, e a ação do Espírito Santo, que nos anima a partir do nosso interior, é a própria vida de Cristo Ressuscitado, que se comunicou a nós e que nos transforma. Para dizê-lo novamente, segundo o Vaticano II: “Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não por merecimento próprio, mas pela vontade e graça de Deus, são feitos, pelo Batismo da fé, verdadeiramente filhos e participantes da natureza divina e, por conseguinte, realmente santos. É necessário, portanto, que, com o auxílio divino, conservem e aperfeiçoem, vivendo-a, esta santidade que receberam” (ibid., 40). A santidade, portanto, tem sua raiz principal na graça batismal, no ser introduzidos no mistério pascal de Cristo, com o qual ele nos dá seu Espírito, sua vida de Ressuscitado. São Paulo destaca a transformação que a graça batismal realiza no homem, e chega a cunhar uma expressão nova, construída com a preposição “com”: ‘mortos com', ‘sepultados com’, ‘ressuscitados com’, ‘vivificados com’ Cristo; nosso destino está indissoluvelmente ligado ao seu. “Pelo batismo fomos sepultados com ele em sua morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dos mortos pela ação gloriosa do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova” (Rm 6,4). Mas o Pai sempre respeita a nossa liberdade e pede que aceitemos este dom e vivamos as exigências que ele comporta; pede que nos deixemos transformar pela ação do Espírito, conformando a nossa vontade com a vontade de Deus.
    Como pode acontecer que a nossa maneira de pensar e as nossas ações se mudem no pensar e agir com Cristo e de Cristo? Qual é a alma da santidade? Novamente, o Concílio nos diz que a santidade não é outra coisa senão a caridade vivida plenamente. “E nós, que cremos, reconhecemos o amor que Deus tem para conosco. Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). Agora, “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5); por isso, o primeiro dom e o mais necessário é a caridade, com a qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a ele. Para que a caridade, como uma boa semente, cresça na alma e aí frutifique, todo fiel deve ouvir a Palavra de Deus voluntariamente e, com a ajuda da sua graça, realizar as obras de sua vontade, participar frequentemente dos sacramentos, especialmente da Eucaristia e da liturgia sagrada, aproximar-se constantemente da oração, da abnegação, do serviço ativo aos irmãos e do exercício de todas as virtudes. A caridade, de fato, é o vínculo da perfeição e cumprimento da lei (cf. Cl 3.14; Rm 13, 10); dirige todos os meios de santificação, dá forma a ela e a conduz ao seu fim.
    Talvez também essa linguagem do Concílio Vaticano II seja um pouco solene para nós, talvez devêssemos dizer as coisas de maneira ainda mais simples. O que é o mais essencial? Essencial é não deixar jamais um domingo sem um encontro com Cristo Ressuscitado na Eucaristia; isso não é um fardo, mas a luz para toda a semana. Não começar nem terminar jamais um dia sem pelo menos um breve contato com Deus. E, no caminho da nossa vida, seguir os “sinais do caminho” que Deus nos comunicou no Decálogo lido com Cristo, que é simplesmente a definição da caridade em situações determinadas. Penso que esta é a verdadeira simplicidade e grandeza da vida de santidade: o encontro com o Ressuscitado no domingo; o contato com Deus no começo e no final do dia; seguir, nas decisões, os “sinais do caminho” que Deus nos comunicou, que são apenas formas da caridade. Daí que a caridade para com Deus e para com o próximo sejam o sinal distintivo de um verdadeiro discípulo de Cristo. (Lumen gentium, 42). Esta é a verdadeira simplicidade, grandeza e profundidade da vida cristã, do ser santos.
    Eis por que S. Agostinho, comentando o quarto capítulo da 1ª Carta de São João, pode afirmar algo surpreendente: “Dilige et fac quod vis” (‘ama e faze o que quiseres’). E continua: “Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor; haja em ti a raiz do amor, porque desta raiz só pode derivar o bem” (7,8: PL 35). Quem se deixa conduzir pelo amor, quem vive a caridade plenamente é guiado por Deus, porque Deus é amor. Esta palavra significa algo grande: “Ama e faze o que quiseres”.
    Talvez pudéssemos perguntar: Podemos nós, com as nossas limitações, nossas fraquezas, chegar tão alto? A Igreja, durante o ano litúrgico, convida-nos a recordar uma multidão de santos que viveram plenamente a caridade, que souberam amar e seguir a Cristo em suas vidas diárias. Eles nos dizem que percorrer esse caminho é possível para todos. Em todas as épocas da história da Igreja, em qualquer latitude da geografia no mundo, os santos pertencem a todas as idades e condições de vida, são rostos verdadeiros de todos os povos, línguas e nações. E eles são muito diferentes uns dos outros. Na verdade, devo dizer que, também segundo a minha fé pessoal, muitos santos, nem todos, são verdadeiras estrelas no firmamento da história. E eu gostaria de acrescentar que, para mim, não só os grandes santos que eu amo e conheço bem são “sinais no caminho”, mas também os santos simples, ou seja, as pessoas boas que vejo na minha vida, que nunca serão canonizadas. São pessoas normais, por assim dizer, sem heroísmo visível, mas, na sua bondade de cada dia, vejo a verdade da fé. Essa bondade, que amadureceram na fé da Igreja, é a apologia segura do cristianismo e o sinal de onde está a verdade.
    Na comunhão com os santos canonizados e não canonizados, que a Igreja vive em Cristo em todos os seus membros, podemos desfrutar da sua presença e da sua companhia, e cultivamos a firme esperança de poder imitar o seu caminho e compartilhar, um dia, a mesma vida beata, a vida eterna.
    Quão grande, bela e também simples é a vocação cristã vista a partir desta luz! Todos nós somos chamados à santidade: é ela a própria medida da vida cristã. Novamente, São Paulo expressa isso com grande intensidade, quando escreve: “No entanto, a cada um de nós foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo. (...) A alguns ele concedeu serem apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas; a outros, pastores e mestres. Assim, ele capacitou os santos para a obra do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo, até chegarmos, todos juntos, à unidade na fé e no conhecimento do Filho de Deus, ao estado de adultos, à estatura do Cristo em sua plenitude” (Ef 4,7.11-13).
    Eu gostaria de convidar todos vocês a se abrirem à ação do Espírito Santo, que transforma as nossas vidas, para sermos, também nós, como peças do grande mosaico de santidade que Deus vai criando na história, de modo que o rosto de Cristo brilhe na plenitude do seu fulgor. Não tenhamos medo de dirigir o olhar para o alto, em direção às alturas de Deus; não tenhamos medo de que Deus nos peça muito, mas deixemo-nos guiar, em todas as atividades da vida diária, pela sua Palavra, ainda que nos sintamos pobres, inadequados, pecadores: será ele quem nos transformará segundo o seu amor.

Padre Alberione falando dos Institutos Paulinos
O fim geral é sempre a glória de Deus e a santificação dos membros mediante a observância dos três votos de obediência, castidade e pobreza, e a orientação da vida de acordo com o próprio instituto. Nele requer-se a imitação da nossa vida religiosa (Família Paulina).
O fim especial é o apostolado colateral com as outras instituições paulinas, como se encontra nos artigos 3-4 do Estatuto:
Artigo 3º: O fim especial consiste em exercer no mundo o apostolado, cooperando com as atividades particulares da Família Paulina. Por isso, os membros, além da oração e do bom exemplo:
1) Colaborarão na redação ou na difusão da imprensa católica, especialmente dos livros e periódicos das congregações paulinas: estimularão assinaturas; promoverão bibliotecas paroquiais, familiares, empresariais, escolares; constituirão centros de difusão da boa imprensa; organizarão ou ajudarão nos dias ou semanas do Evangelho, da Bíblia, exposições da boa imprensa, dias catequéticos, litúrgicos etc.
2) Poderão favorecer a divulgação de filmes cinematográficos bons; tornar conhecidas e defender as indicações cinematográficas do CCC (Centro Católico Cinematográfico); abrir, dirigir, cooperar para o aumento de salas católicas de cinema etc.
3) Nos países onde isso é possível, poderão preparar programas para o rádio ou a televisão, ou ajudar as emissoras católicas; em toda parte poderão apoiar os esforços que visem a tornar esses poderosos meios de comunicação instrumentos de educação humana e cristã.
4) Será obrigação de todos os membros reparar pelos pecados que são cometidos pelo abuso dos meios técnicos modernos de comunicação do pensamento humano: rádio, cinema, televisão, imprensa, espetáculos.
5) Poderão organizar a adoração eucarística, cuidar do serviço aos sacerdotes, cuidar dos paramentos sagrados, favorecer a criatividade no campo da liturgia sagrada.
6) Potenciarão e ajudarão o mais possível as obras paroquiais e diocesanas, sobretudo as obras de caráter internacional.
7) Rezarão na intenção do clero e dos religiosos: poderão procurar e ajudar as vocações para a Família Paulina e para o clero diocesano; promoverão e favorecerão os dias e as exposições vocacionais e toda iniciativa apta para incrementar e sustentar as vocações.
Artigo 4º: Os membros do ramo clerical “Jesus Sacerdote”, de maneira particular e conforme o próprio estado, considerarão seu primeiro e principal dever apostólico aquele que lhes for assinalado pelo bispo do lugar.

(Institutos da Família Paulina • abril de 1960 • Ut perfectus sit homo Dei 1 (1960) pp. 337-339.


     




A ORAÇÃO



Pe. Alberione, em Balsamo (Milão), 12 de agosto de 1958, por ocasião do 1° curso de exercício do nascente Instituto NSA.

Toda pessoa que faz os exercícios espirituais, os conclui com propósitos. Falamos particularmente dos Institutos Seculares e sabemos que nestes Institutos há grandes vantagens, há também deveres e há meios para realizar estes propósitos com satisfação. O meio geral e principal é a oração, por isso sendo observantes da obediência, da castidade, da pobreza, se fará bem o apostolado, à medida da oração.
O que é a oração todos sabem. Existe a oração vocal e existe a oração mental. A oração vocal: por exemplo, o terço, a via-sacra, o canto dos ofícios, as orações da manhã e da noite etc. Chamam-se vocais, porque são feitas com a voz, não porque sejam feitas somente com a boca, mas porque, além da mente e do coração, há também a palavra externa. Por isso, falando, por exemplo, do terço, há a meditação do mistério e no mistério procura-se tirar um fruto, um propósito. Mas além da meditação do mistério deve-se também orar com a boca e por isso chama-se oração vocal. O terço é oração muito fácil. Conheço grande número de pessoas que recitam diariamente o rosário inteiro, que consta de três terços [agora quatro], e outras mais numerosas que recitam diariamente o terço.
Além da oração vocal, temos a oração mental. É aquela que se faz especialmente no íntimo, com a mente, com o coração e também com os propósitos. Quem faz o exame de consciência, faz oração mental. Quem exprime ao Senhor e tem no seu coração desejos santos, faz oração mental, interna.
É preciso, pois, distinguir: há a oração feita de fórmulas, há o espírito de oração e há a vida de oração. Tem-se oração de fórmulas, quando se recitam, por exemplo, as orações da manhã e da noite, quando se reza o terço, quando se dizem as orações de preparação e ação de graças para a comunhão. Todas estas são fórmulas de oração que lemos ou dizemos acompanhando-as com sentimento interno. Mas, além destas fórmulas de oração, há também o espírito de oração que se tem quando interiormente se fala com Deus: sente-se a união com Deus, exprimem-se sentimentos próprios. Existem almas que em vez de fórmulas de preparação e agradecimento para a comunhão, fazem orações espontâneas que saem da alma e do coração. Então há o espírito de oração. O espírito de oração é sentimento interior de humildade e de confiança em Deus. Sente-se a necessidade e recorre-se ao Senhor. Sentimos que de nós mesmos nada podemos, com Deus podemos tudo. Sentimos que somos filhos pequeninos, mas Deus é o Pai bom e grande. E tudo isso é expresso naquela fórmula que São Francisco de Sales usava: “De mim nada posso, mas com Deus posso tudo”. Quando habitualmente temos este senso de fraqueza, temos esta espécie de temor e de desconfiança de nós, não nos fixando, porém, em pensamentos de desânimo, de desespero, e sim voltando-nos com confiança ao Senhor, então há o espírito de oração. Assim pode se dizer que a alma está sempre em estado de oração.
Há pessoas que não recitam muitas fórmulas, mas têm sempre estes dois sentimentos: desconfiança de si, confiança total no Senhor. Consideram as coisas da vida presente como meios para o céu, para a vida eterna, e consideram a mesma vida presente como dom de Deus, porque nossa vida em si, o que vale? Somente se ela é considerada em ordem à eternidade, vale tudo. Em si não vale nada porque com a morte tudo acaba, mas as consequências são eternas. As consequências da vida de Judas quais foram? A eterna condenação, as penas eternas. As consequências da vida de São Pedro e de São Paulo quais foram? O céu, o paraíso. São duas estrelas do céu. Festejamos hoje Santa Clara; era uma jovem de Assis filha de ricos senhores, portanto, tinha na família todas as comodidades que se podem desejar e diante de si tinha um futuro agradável, quanto o podia prever. Mas ela conheceu São Francisco que havia deixado tudo para dar-se a Deus. Então, tocada e iluminada pela graça de Deus, decidiu-se segui-lo na pobreza e na vida simples e laboriosa, sobretudo naquele espírito particular no qual a dirigia o Santo. Assim chegou à santidade.
Nossa vida vale enquanto nos merece o céu, e é grande dom de Deus do qual devemos prestar contas. E quando esse dom não fosse utilizado para Deus, o que seria? Poucos são os anos de vida, mas as consequências são eternas. Quantos, enquanto estamos falando, sofrem as penas do inferno e compreendem que teriam podido, na sua vida, ganhar a felicidade eterna. Por isso vivem no desespero eterno nos seus sofrimentos, que não terminarão jamais. E quantas almas, pelo contrário, enquanto estamos falando, nos olham do céu, nos animam e nos esperam: “os justos se juntarão ao meu redor, por causa do bem que me fizeste (Sl 142,8). Animam-nos: andai em nosso caminho, não vos desvieis para a direita nem para a esquerda. O caminho é também difícil, mas pé na estrada, ao céu.
Quando vivemos neste sentimento de sobrenaturalidade, pode-se dizer que vivemos em continua oração. E isto nos põe no terceiro grau de oração. O Senhor diz no Evangelho: “Oportet orare semper et non deficere”: é preciso orar sempre, sem jamais esmorecer (cf. Lc 18,1). Pode-se interpretar este texto para dizer que é necessário orar sempre sem jamais cansar-se? Sim. Isto quer dizer que hoje é preciso orar quanto devamos, amanhã orar quanto devamos, no ano que vem, ainda orar quanto devamos. Nunca transcorrer um mês sem oração, jamais fazer como certas pessoas que durante algum tempo são fervorosas, frequentam os sacramentos, até a confissão semanal e a comunhão cotidiana, mas depois, passam meses e talvez períodos ainda longos sem orar. É necessário orar sempre.
Mas este texto do Evangelho se interpreta também de outro modo: sempre orar no sentido de transformar a nossa vida em oração. Quem trabalha ora. Com isto se entende que quem trabalha bem, com as devidas disposições, oferecendo ao Senhor o seu trabalho, o seu cansaço, ora. Oferecendo assim os nossos trabalhos ao Senhor, fazemos um ato de obediência, sacrificamos a nossa saúde, o nosso tempo, o oferecemos ao Senhor em ato de adoração: fazemos a Deus o dom da nossa vida, das nossas forças, do nosso tempo, porque tudo consagramos a ele. Então se trabalha para o Senhor. Certamente se trabalha para outro fim, isto é, para ganharmos o pão com o suor do nosso rosto. Mas além deste fim imediato, aliás, material mas necessário, há também o fim sobrenatural: cumprir o santo querer de Deus. Mas é preciso ter reta intenção, para que o trabalho se transforme em oração.
Passamos as vinte e quatro horas do dia e enquanto elas se sucedem, o sol faz o seu giro, para falarmos popularmente. O sol nas vinte e quatro horas vê sobre a terra elevar-se continuamente o cálice e a hóstia para o céu. São quatrocentos mil sacerdotes que celebram missa durante o dia e há três, quatro consagrações cada segundo. Isto quer dizer que existem uma missa contínua e continuada, que o sacrifício da cruz está sempre vivo. O sol que hoje a esta hora ilumina certas terras, depois passa com a sua luz a outras terras e a outras terras ainda, mas continuamente é a hóstia, é o cálice que se elevam para o céu em adoração, agradecimento, satisfação e súplica a Deus. Um calvário sempre vivo, sempre verdadeiro, sempre atual, que se prolonga nos séculos, que glorifica o Senhor e faz chover graça e bênção sobre a humanidade mais afastada de Deus. Quem durante o dia tem intenção de viver unido a todas estas missas, ora dizendo: “Ofereço-vos todas a minhas intenções, ações e sofrimentos em união com todos os sacerdotes que celebram a santa missa”; quem age desta maneira, está em contínua adoração. Por outra parte, diz São Paulo: “Tudo o que fizerdes de palavra ou ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus” (Cl 3,17). Tudo, também o descanso, também o tempo da recreação, tudo seja em nome do Senhor Jesus, para maior glória de Deus. Mas tudo unido a este sacrifício continuado sobre a terra. É isto que mantém firme a mão da justiça de Deus para não ferir a humanidade tão maculada de pecados. É ainda a súplica contínua para que tantas almas que se consagram a Deus, vivam no amor de Deus e sejam apóstolas nesta terra. Então esta missa por uma parte paga também os nossos pecados, as nossas faltas de correspondência à graça, as nossas friezas. E ao mesmo tempo, obtém as graças para a nossa santificação, para o nosso apoio, para que tenha continuidade o trabalho apostólico, para que tenha continuidade o trabalho de santificação. Então se todo o nosso dia é oferecido neste espírito, com a intenção “pela qual vós, ó Jesus, vos sacrificais, cada momento, sobre o altar”, então o dia se torna dia de oração, “é necessário orar sempre, sem jamais esmorecer” (Lc 18,1). É necessário porque quem ora se salva e quem não ora, se condena. Quem ora muito torna-se santo e quem ora pouco, não se santifica. Chegará talvez ao céu, sim, porque orou um pouco.
Quem não pode estar muitas horas parado dentro de uma Igreja porque o esperam muitas ocupações, tenha pelo menos a vida de oração, e quanto lhe for possível, realize aquelas práticas que são necessárias ou pelo menos úteis. Mas quando não se podem fazer aquelas práticas que se gostaria de fazer, então se transforme a vida em oração, e com frequentes jaculatórias ao Senhor mantenha-se unido aos sacrifícios que se estão oferecendo sobre os altares com as missas continuadas que se sucedem a cada hora, a cada instante. É necessário orar. Quem não vai à oração, vai à ruína. Muitos vão à ruína porque não oram. Mas também, os que oram tem provações, sofrimentos, às vezes tem padecimentos, são contrariados, combatidos. É verdade, mas durante as provações, progridem, transformam seus sofrimentos em méritos, e as suas provações servem para firmá-los na virtude: “com a tentação ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar (1Cor 10,13).
Falamos da obediência, da castidade, da pobreza, mas não quis descer a particularidades. Pode ser que haja momentos de desorientação, mas quem ora, entenderá bem a virtude da pobreza, da castidade, da obediência, assim como entenderá bem o voto de pobreza, de castidade, de obediência, os quais conferem aumento grande de graça e de mérito para a eternidade. Oremos muito! Dir-se-á, talvez, que não há tempo, mas então é necessário converter todo o tempo em oração. Há almas que são como que uma oração ambulante, que caminha. Fazem as coisas em casa, fora de casa, no estabelecimento comercial, no local de trabalho, ou na igreja. Mas qualquer coisa que façam, fazem-na por Deus, unidas em espírito às missas que se celebram em todo o mundo, oferecendo sempre com Jesus-Hóstia, a si mesmas. Então não devemos mais nos lamentarmos não haver tempo para orar. São as vinte e quatro horas do dia. Mesmo dormindo, porque à noite se põe a intenção de que todas as respirações sejam transformadas em atos de amor de Deus, e todas as batidas do coração que se sucederem durante o sono sejam atos de amor de Deus. Então tudo acontece em cumprimento da vontade de Deus. À noite, pede-se ao Senhor que prepare as graças para o amanhã e que mande, enquanto descansamos, muitas almas para o céu, para o seu descanso eterno. Há almas que decidiram dar ao céu pelo menos uma alma no dia, e libertar ao menos uma alma do purgatório. Assim, realiza-se apostolado e sé obtêm resultados.
Às vezes, porém, parece que o apostolado obtém o efeito contrário, ou ao mesmos que não dá resultados visíveis. Mas quando se continua a orar, haverá sempre resultado, mesmo quando parece que conseguimos o efeito contrário. É Deus que age, e “se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8,31) Se Deus está conosco, o que não podemos esperar de Deus? Há almas vítimas, as quais aplacam a justiça de Deus irritado; almas que só sabem pensar no bem; almas que vivem em contato habitual com Deus em qualquer lugar se encontram: no trem, na rua, na cozinha, no escritório etc. Em tudo o que fazem, estão unidas a Deus. Esta união será mais ou menos sentida, mas pouco a pouco se tornará sempre mais sentida e tornará a alma sempre mais alegre, porque sentirá a sua união com o Senhor, sempre mais viva.
Agora faze-se um bom exame sobre a oração. Ora-se? Produzem-se somente fórmulas ou há o espírito de oração? E se ensina a orar? Agora, se olhais o mundo, se olhais a sociedade, os movimentos operários, as famílias, faz-se de tudo, fazem-se muitos sacrifícios muitos trabalhos, tomam-se tantos caminhos, empregam-se tantos meios e muitas vezes se deixa de lado a oração. “Temos muito a fazer!” Mas a primeira coisa a fazer é orar. E se o dia começa sem Deus, que acontecerá no decurso deste dia? Certos motivos que se aduzem a que servem para a alma? Vivemos somente para a terra, ou vivemos para a eternidade?
Por isso, realizamos o apostolado da oração, não somente oferecendo nossas orações, ações e sofrimentos em união com o sacrifício da cruz, mas, além disto, enchendo o dia de oração. Então, a nossa atividade produzirá mais frutos. Apostolado da oração: ensinar a orar. Há crianças que ainda não sabem as orações e já querem que sejam admitidas à comunhão. Há adultos que desaprenderam até as orações principais. Existem homens e existem às vezes moribundos que, quando lhes sugerimos que façam ou digam o ato de contrição, permanecem mudos, por não saberem recitar as orações. Fazer apostolado da oração: ensinar a orar. Peçamos ao Senhor: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11,1) e por nossa vez, ensinemos os outros a orar.
Particularmente para quem se dedica ao apostolado catequético; ensine a orar, exija-o, fazendo as crianças repetirem, levando frequentemente as crianças à comunhão e à primeira confissão. Ensine a orar: participar bem da missa, fazer participar das funções da Igreja. Ensine a orar: a devoção a Maria, o terço, particularmente a devoção a Jesus-Hóstia, a Jesus que mora em nossos altares, aos anjos da guarda, aos santos, cujo nome se tem.
Assim, o apostolado da oração, enquanto é de extrema utilidade para nós, será também de grande vantagem para as almas das quais nos aproximamos.

(Pe. Alberione, Meditações por consagradas seculares, pp 51-58, Edizioni Paoline, 1976)


SANTIFICAR O COMEÇO DO DIA



15 de agosto de 1966 - por ocasião dos exercícios em Aríccia.

            O argumento que vos convido a meditar é este: santificar o começo do dia. De manhã, quando o céu se apresenta sereno, espera-se um dia maravilhoso. Assim em nosso íntimo, pela manhã, haja serenidade recebendo da graça do Senhor um novo dia e a graça de poder enchê-lo de méritos. Noite a noite levai até o céu os méritos alcançados no dia. Muitos negociantes talvez não ganhem nada no dia, mas vós fazendo bem tudo o que deveis fazer, todas as noites podereis mandar para o céu o conjunto dos méritos do dia.
            Deve-se também dizer que não é somente o dia que serve para merecer para a eternidade, mas também à noite. Como nos alimentamos para manter-nos no serviço de Deus, igualmente há a obrigação de dormir e descansar. Por isso dizemos: “Abençoai-nos, ó Senhor, a nós e ao alimento que vamos tomar...”, e iniciando assim ou estando já na cama: “para manter-nos no vosso santo serviço”. O que se diz do alimento se diz também do descanso. Tomar o alimento que é necessário para a vida é mérito. E Jesus tomava o seu alimento, Jesus tomava o seu descanso, o seu sono. Está escrito no Evangelho. Mas oferecê-lo ao Senhor, torna-se um mérito. Por isso não pensemos somente em oferecer ao Senhor os méritos alcançados no dia, mas também o próprio descanso. Ofereçamos tudo ao Senhor, as vinte e quatro horas, totalmente vividas para ele.
            Como devemos agradecer ao Senhor para que todas essas horas do dia mereçam e enriqueçam a alma de méritos, cada vez maiores! Quando a alma é orientada mais perfeitamente para Deus — com amor sempre mais intenso — então cada coisa se torna mais preciosa: o que se refere às vossas obrigações, a oração e todas as atividades do dia.
            Comecemos bem o dia. É um sacrifício que se tem de fazer. Outros descansam além da conta. Mas para regular a nossa vida, à noite se vá cedo à cama, e se levanta cedo pela manhã. Sim, na medida justa, porque se o dia não começou bem, não enriquecerá a alma como devia enriquecê-la. Depois de termos descansado, cumpramos os deveres de piedade, da oração, desde o momento em que oferecemos o dia ao despertar, até as outras práticas de piedade.
            O segredo do dia é o início do dia; o segredo, isto é, a chave. E o que fazer? A missa, a meditação, a comunhão, quando se pode. E depois, as outras práticas de piedade, ou orações que estais acostumadas a fazer. Começai o dia com o Senhor. Então se começa com as graças de Deus para a viagem do dia. Quando temos de fazer uma viagem um pouco longa, nos fornecemos do necessário, pelo menos do dinheiro e do alimento para o dia. Assim durante as 24 horas devemos preparar-nos e ter conosco as graças do Senhor, porque não sabemos o que será o dia, que tentações encontraremos, que dificuldades poderemos ter etc. Fornecer-se do necessário para o caminho do dia.
            O que assegura um bom dia, um dia santo, é a oração. Então falemos em primeiro lugar da missa. Na vossa condição, se podeis participar dela cada dia, muito bem! Participar! A missa é a oração maior, do máximo valor, portanto, demos sempre suma importância à missa.
            O que é a missa, isto é, o sacrifício realizado por nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário? A primeira parte da missa é a que se chama a liturgia da Palavra, ele nos serve de tema de meditação. Pode-se fazer a meditação à parte, como geralmente acontece. Na primeira parte da missa há a liturgia da Palavra, do início até o Credo inclusive, quando o Credo é recitado segundo a liturgia. Devemos considerar bem as palavras do intróito [antífona de entrada], a leitura, o evangelho, e os versículos nele incluídos. Meditá-los bem, compreendê-los sempre melhor, sentir que o Senhor quer que nossa mente se eleve a pensamentos divinos. O intróito [antífona de entrada], e o próprio oremos, a leitura e o evangelho, servem para reforçar e viver com pensamentos divinos, com pensamentos da Sagrada Escritura.
            Seria grande mérito ler o evangelho, a leitura e, podendo-se, também toda a Escritura. Entretanto, se não há sempre tempo, leiamos ao menos aquelas partes das Escrituras que vem no Lecionário. Estas partes são as principais, portanto, consideremo-las, leiamo-las atentamente, não só, mas aprofundemo-las, aprofundemos as palavras da leitura e do evangelho que cotidianamente ouvimos na missa. A palavra de Deus não é a palavra do homem, não é a palavra de um santo, mas é a palavra de Deus. Por mais que um homem seja sábio, a palavra da Escritura é de valor imensamente superior. Portanto, sigamos a palavra de Deus na missa, lendo-as até antes.
            Mas a missa não dispensa das orações comuns começando pelo Ângelus. Embora as orações sejam breves, não devem faltar, elas se referem às necessidades do dia. E se não se pode participar da missa por alguma razão, que pelo menos as orações sejam recitadas com atenção, com fé, com humildade. Sim, para começarmos bem o dia!
            A segunda parte refere-se à liturgia eucarística e, portanto, ao sacrifício realizado no Calvário, o oferecimento de Jesus, o oferecimento da sua vida ao Pai Celeste. Jesus! É útil participar ao sacrifício da missa com Maria. Como Maria estava aos pés da cruz, e como assistiu, como viu, quando o Filho de Deus encarnado expirou na cruz. Se estivermos acompanhados com ela, temos mais graças, mais intimidade, maior compreensão do sacrifício da missa, o qual é para adoração ao Pai Celeste, agradecimento ao Pai Celeste, satisfação dos pecados ao Pai Celeste e súplicas das graças ao Pai Celeste. Os quatro fins que tem a missa.
            Sigamos bem a liturgia como é apresentada hoje, segundo o Concílio Vaticano II, que conheceis muito bem. E é bom querer, ou ao menos podendo, completar o sacrifício, isto é, receber a hóstia santa. Então temos o viático do dia que nos serve para cumprir as coisas mais santamente e no meio de muitas dificuldades e também de sofrimentos. Jesus está conosco e nós estamos com Jesus e vivemos unidos a ele. Portanto, por maiores que sejam as dificuldades do dia, estamos com Jesus. Estou com Jesus e Jesus está comigo, isto nos consola sempre. E quando chega algum temor, ou desconforto, ou dificuldade, estamos com Jesus e Jesus está conosco.
            Depois, a meditação, que pode ser mais breve ou mais longa. Penso, porém, que já foi explicado muitas vezes o que é a meditação. Não é muito fácil fazer a meditação. É uma oração em que devemos agir, isto é, pôr em movimento o nosso ser e, portanto, a mente, a vontade, o coração. É todo o ser que é acionado para a santificação do dia. Não é simples leitura. Uma coisa é leitura espiritual, outra é meditação. Pode acontecer que se comece com a leitura, e geralmente se começa lendo uma passagem de um livro adapto. Mas, a parte principal da meditação é refletir, considerar, fazer nossas aquelas verdades que foram lidas. Segue-se o exame de consciência para verificar se fizemos o que era aconselhado no livro. Depois, os propósitos e a oração para cumpri-los. Após a reflexão e os propósitos vem à oração. Muitos aconselham empregar a metade do tempo para a leitura e as reflexões e a outra metade para a oração. Com efeito, podemos fazer muitos propósitos, mas sem a graça e o conforto do Senhor durante o dia, fracassamos muitas vezes. Então, oremos! Mas, sou distraído! dirá alguém. Então se és distraído, procura recolher-te, e se for difícil recolher-te, reze o terço para ocupar uma parte do tempo ou todo o tempo da meditação.
            De manhã, com a meditação, organizemos o dia. Que farei? Como o farei? Isto, aquilo, este sacrifício, aquela dificuldade que me espera, o trabalho que vou encontrar, os sofrimentos ou as coisas que são de conforto. Em suma, prever as condições e andamento do dia, o que cada um pode prever que lhe aconteça. Geralmente se leva uma vida ordinária, a de ontem, a de hoje e a de amanhã, portanto, podemos estabelecer e fazer o programa do dia. E como fazê-lo? Pensar aos vários deveres, programá-los para os cumprir bem e depois orar para termos sucesso: deste modo o dia terá bom êxito. Este conjunto que quer dizer? É como um exame preventivo. À noite se fará um exame retrospectivo do dia, mas pela manhã as almas de vida interior fazem um exame preventivo: deverei fazer isto, deverei fazer aquilo. Se houver uma dificuldade, deverei tomar esta ou aquela medida... Então façamos o exame preventivo: como farei as coisas do dia, uma a uma, como dispô-las de maneira que não perca o tempo. E durante o dia os méritos aumentam.
            Quantas pessoas perdem tempo! Não nos percamos em coisas inúteis, mas santifiquemos cada minuto. Digamos: cada minuto. Devem fazer-se aquelas coisas que servem para a convivência social, certamente, e por social entendemos, quer na família, quer na paróquia, quer na sociedade em geral. Sim, é preciso dispor bem tudo, como estais nas circunstâncias em que vos encontrais. Certamente, é preciso pôr sempre um aumento de fé. Quero dizer que para vós que estais no mundo, é preciso ter uma graça mais abundante do que para as pessoas que levam a vida no claustro. Estas pessoas têm tudo ordenado, e já sabem como as coisas do dia se apresentam; mas na vossa vida, estas coisas se apresentam inesperadamente. Vós deveis praticar mais virtudes, em comparação com a vida do claustro. Sim, é grande o mérito de viver segundo a obediência, segundo as disposições, segundo as regras dos Institutos regulares. Mas agora que, segundo o Concílio, sois também Instituto regular religioso, para vós a prática da pobreza, da castidade, da obediência é mais difícil. Portanto, pela manhã precisai prever o dia e estabelecer como agir. Porque pensando, por exemplo, na observância da pobreza, quantas circunstâncias diversas entre uma pessoa e outra! Por isso, é útil prever pela manhã. Prever como viver castamente, delicadamente, e como praticar a obediência.
            É necessário, além disso, que na oração se peça ao Senhor a graça de observar os votos que foram emitidos: a pobreza, a castidade e a obediência; mas durante o dia, pormenorizadamente; nas várias circunstâncias. Ás vezes, pode-se praticar com perfeição. Há pessoas que são verdadeiramente edificantes e dão boa impressão. São como pessoas que difundem o odor religioso, santo, o perfume da graça que têm no seu íntimo. Temos de considerar as dificuldades, mas pedir o aumento da graça mais do que os que estão na vida do claustro. Dizer ao Senhor que temos necessidade de graças mais abundantes, maiores, para que o dia seja santificado. Tanto mais que há muita liberdade de escolha em muitas coisas. Então que haja luz que nos guie, que nunca haja capricho. Muitas vezes se prefere fazer uma coisa mais simples comparada com outra mais difícil, mas destinada a dar maiores frutos. É preciso que haja oração particular para vós, no sentido de pedir as graças particulares para vós, durante o dia.
            Quando já estamos bem fornecidos do que é necessário para fazer a viagem do dia, então comecemos o dia com o trabalho, com as obras às quais somos chamados. Sim, para viverdes verdadeiramente na vossa condição de Instituto religioso leigo. Ele vos colocou numa ordem de vida de grande riqueza de graças e de méritos na hora da morte. Oh! Como estareis contentes por terdes abraçado esta vida e por a terdes vivido bem! Que riquezas de méritos e, portanto, de prêmio. Viveis no meio do mundo! Parece que viveis como os outros, mas existe uma diferença muito importante entre a vida cristã e a vida consagrada, é diferença grande, profunda. E vós superais a vida cristã. Mas nas vossas circunstâncias, a vossa vida se enriquece de méritos imensos, superiores.
            Certamente fareis bons propósitos neste curso de exercícios.
            Todos juntos, unidos, oremos pelo progresso: Que estes dias tragam a todos e a cada um de vós grande bem e grande alegria. Desde o dia em que eu soube a data em que fareis os exercícios, sempre vos encomendei na missa. E assim oremos todos juntos, consideremo-nos unidos, para fazermos todos juntos força junto de Deus, para obtermos abundância e riqueza de dons, de graça e de consolação.
(Pe. Alberione, Meditazioni per consacrate secolari)



SOU TALVEZ EU, SENHOR?







Nesta meditação, levemo-nos mentalmente ao Calvário. Os evangelistas reúnem o evento mais perturbador da história do mundo em três palavras: “e o crucificaram” (Marcos e Mateus), “ali o crucificaram” (Lucas), “para crucificá-lo” (João). Os leitores aos quais eram dirigidos estes textos sabiam bem o que reuniam estas palavras; nós não, devemos buscá-lo em outras fontes. Também estas, porém, são estranhamente reticentes; o suplício da cruz era considerado assim terrificante que se devia ficar longe, “não só para os olhos, mas também para os ouvidos de um cidadão romano”[a dizer de Cícero]. Não se devia falar entre as pessoas de bem.
O condenado podia ser ou ligado com cordas aos pulsos ou fixado com pregos à cruz. A menção das feridas nas mãos e nos pés do Ressuscitado afirma que para Jesus foi adotado o segundo modo, pregado à cruz, e se pode facilmente imaginar o sofrimento que isto comportava.

Diversas teorias foram propostas sobre a causa física imediata da morte de Jesus: enfarto, asfixia. A mais recente indica na desidratação e na perda de sangue a explicação médica mais plausível da morte de Cristo.
Mas, bem mais profunda e dolorosa que a paixão do corpo, foi aquela da alma de Cristo. Esta tem diversas causas. A primeira é a solidão. Os evangelhos insistem muito sobre o progressivo abandono de Jesus na sua Paixão: por parte da multidão, dos discípulos e, por fim, do próprio Pai: “e me deixareis sozinho” (Jo 16,32); “Então todos os discípulos, abandonando-o, fugiram” (Mt 26,56; Mc 14,50).

A solidão de Cristo é impressionante, sobretudo no episódio do Getsêmani, quando ele se aproxima repetidamente e convida aqueles que lhe estão próximos. Para exprimir a angústia desse momento, Marcos e Mateus usam o verbo ademonein. Em grego a letra a- no início de uma palavra indica ausência, provação; demonein tem a mesma raiz de demos, povo, e de democracia. A idéia subjacente é, portanto, aquela de um homem lançado fora da convivência humana, uma espécie de terror solitário, como alguém que se encontra projetado em um ponto remoto do universo onde, se ele gritar, sua voz perde-se em um vazio sideral.
A solidão encontra seu cume sobre a cruz quando Jesus, na sua humanidade, se sente abandonado, por fim, pelo Pai: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? Isto não foi um grito de desconforto e de desespero, como algumas vezes se pensou. Se os evangelistas o tivessem considerado assim, não teriam feito depender disso a confissão de fé do centurião romano: “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus!” (Mt 27,54; Mc 15,39). Nenhuma tentativa impede de pensar que os evangelistas tenham interpretado o grito de Jesus, à luz do salmo citado, como expressão de extrema solidão e abandono que Jesus experimenta neste momento em sua humanidade.

Aquilo que o apóstolo Paulo sugere como a suprema renúncia e sofrimento possível ao mundo, “tornar-se anátema, separado de Cristo, em benefício de seus irmãos de sangue” (cf. Rm 9,1), Cristo sobre a cruz, de fato, experimentou em relação a Deus. Ele se tornou o ateu, o sem Deus, para que os homens pudessem retornar a Deus. Há, de fato, um ateísmo ativo, culpável, que consiste na rejeição de Deus, e há um ateísmo passivo, de pena e de expiação, que consiste no ser rejeitado, ou sentir-se rejeitado por Deus. É necessário interrogar os místicos que partilharam em pequena parte a noite escura de Cristo, última entre eles, Madre Teresa de Calcutá, para saber quanto é dolorosa esta forma de ateísmo... [Cf. Pe. Pio, Sta. Teresinha]

Outro aspecto da Paixão interior de Cristo é a humilhação e o desprezo. “Desprezado e rejeitado pelos homens... maltratado, deixou-se humilhar (Is 53, 3.7). Assim havia predito Isaías e assim aconteceu. Do momento da prisão até na cruz existe um crescer de desprezo, insultos e escárnios em torno da pessoa de Cristo. “Revestiram-no de púrpura e depois trançaram uma coroa de espinhos, puseram-na sobre a cabeça. Começaram depois a saudá-lo: Salve, rei dos Judeus! E batiam em sua cabeça com um caniço. Cuspiam nele e, de joelhos, adoravam-no. Depois lhe arrancaram a púrpura e lhe repuseram suas vestes, e o conduziram para fora para crucificá-lo” (Mc 15,17-20). Sob a cruz, “os sumo sacerdotes, escarnecendo-o com os escribas e os anciãos, diziam: Salvou os outros, não pode salvar a si mesmo” (Mt 27,41s.). Jesus é o vencido. Todos os inumeráveis “vencidos” da vida têm alguém que pode entendê-los e ajudá-los.
Mas a paixão da alma do Salvador tem uma causa agora mais profunda que a solidão e a humilhação. No Getsêmani, ele pede para que seja afastado dele o cálice (cf. Mc 14,36). A imagem do cálice evoca quase sempre, na Bíblia, a ideia da ira de Deus contra o pecado (cf. Is 51,22; Sl 75,9; Ap 14,10). 

No início da Carta aos Romanos São Paulo estabeleceu um fato que tem valor de princípio universal: “A ira de Deus revela-se do céu contra toda impiedade” (Rm 1,18). Onde há o pecado, não pode não se dirigir o juízo de Deus contra isso, de outra forma, Deus estaria comprometido com o pecado e cairia a própria distinção entre o bem e o mal. A ira de Deus é a mesma coisa que a santidade de Deus. Ora, Jesus no Getsêmani é a impiedade, toda a impiedade do mundo. Ele, escreve o Apóstolo, é o homem “feito pecado” (2Cor 5,21). É contra ele que “se revela” a ira de Deus. A infinita atração que existe pela eternidade entre Pai e Filho é atravessada ora por uma repulsão tanto quanto infinita entre a santidade de Deus e a malícia do pecado e isto é “beber o cálice”.

É o momento agora de passar da contemplação da Paixão à nossa resposta a ela. No início foi lembrado o papel desempenhado pela arte ao tratar a Paixão de Cristo. Junto à pintura e à escultura, é necessário recordar com gratidão também a música. Para muitas pessoas, dentro e fora do cristianismo, a Paixão segundo São Mateus, de Bach, é o único trâmite de conhecimento da Paixão de Cristo. Um trâmite diante do qual é difícil permanecer totalmente neutro e alheio. À narração dos fatos (recitativos), alterna-se nessa a meditação (as árias), a oração (corais), o impulso do coração; tudo que penetra nos sentidos e na alma pela sugestão de uma música que toca aqui um de seus vértices mais sublimes.
É difícil ouvir a Paixão segundo S. Mateus de Bach e não ficar profundamente comovidos. Ao anúncio da traição, todos os apóstolos perguntam a Jesus: “Sou talvez eu, Senhor?” Antes, porém, da resposta de Cristo, anulando toda distância entre o evento e sua recordação, Bach faz intervir o devoto cristão de hoje que grita sua confissão: “Sim, sou eu, eu o traí!”. 

Esta interpretação é profundamente bíblica. O kerigma, o anúncio, da paixão é formado sempre por dois elementos: de um lado um fato — “padece”, “morre” —, e do outro lado a motivação do fato — “por nós”, “pelos nossos pecados”. Foi levado à morte — disse o Apóstolo — “pelos nossos pecados” (Rm 4,25); morre “pelos ímpios”, é morto “por nós” (Rm 5,6.8).
A Paixão nos parece inevitavelmente estranha, de modo que ali não se entra através daquela portinha estreita do “por nós”. Conhece verdadeiramente a paixão só aquele que reconhece que essa é também sua obra. Sem isto, o resto é divagação. Quem sou eu? Sou o Judas que trai, Pedro que nega, a multidão que grita “Barrabás!”. Toda vez que preferi minha satisfação, meu conforto, minha honra à de Cristo realizou-se isto. Pe. Primo Mazzolari, em um memorável discurso para a Sexta-Feira Santa, não se enganou em falar de “nosso irmão Judas”.

Se Cristo morreu “por mim” e “por meus pecados”, agora quer dizer que eu matei Jesus de Nazaré, que os meus pecados o esmagaram. É aquilo que Pedro proclama com força aos três mil espectadores, no dia de Pentecostes: “Vós matastes Jesus de Nazaré!”, “Vós acusastes o Santo e o Justo!” (cf. At 2,23; 3,14).
Aqueles três mil não estiveram todos presentes sobre o Calvário a bater os pregos e nem diante de Pilatos pedindo que fosse crucificado. Poderiam ter protestado, mas aceitam a acusação e dizem aos apóstolos: “Que devemos fazer, irmãos?” (At 2,37). O Espírito Santo “convenceu-os do pecado”, usando para isso um simples raciocínio: se o Messias morreu pelos pecados de seu povo e eu cometi um pecado, eu matei o Messias.
Está escrito que no momento da morte de Cristo “o véu do templo rasgou-se em dois de cima abaixo, a terra fendeu, as rochas despedaçaram-se, os sepulcros abriram-se e muitos corpos dos santos mortos ressuscitaram” (Mt 27,51s.). Destes sinais se dá, normalmente, uma explicação apocalíptica (linguagem simbólica para descrever o evento escatológico), mas esses tiveram também um significado parenético, isto é, indicam aquilo que deve vir no coração de quem lê e medita a Paixão de Cristo. Escreve S. Leão Magno: “Treme a natureza humana frente ao suplício do Redentor, espedaçam-se as rochas dos corações infiéis e aqueles que estavam fechados nos sepulcros de sua mortalidade saíram para fora, rolando a pedra que pesava sobre si” (S. Leão Magno, Sermo 66, 3 - PL 54, 366).

Estamos juntos no ponto no qual devemos recolher o fruto de toda nossa meditação da Paixão. A Bíblia explicou o sentido profundo da palavra metanoia, conversão, como uma transformação de coração: “Criai em mim, ó Deus, um coração novo”, “Rasgai os corações, não as vestes” (Gl 2,23). Também a conversão da multidão que escutou o discurso de Pedro é expressa mediante a imagem do coração: “Sentiram penetrar o coração” (At 2,37).

Toda conversão supõe um movimento, uma passagem de um estado a outro, de um ponto de partida a um ponto de chegada. O ponto de partida, o estado do qual se deve sair, é para a Escritura aquele da dureza do coração: “Então os entreguei ao seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos” (Sl 80,13), “Pela dureza do vosso coração Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres” (Mt 19,8), “entristecido pela dureza de seus corações” (Mc 3,5), “Reprovar-te-ei pela própria incredulidade e dureza de coração” (Mc 16,14), “Com a sua dureza e o seu coração impenitente acumula cólera sobre você” (Rm 2,5).
Em toda a Bíblia, mais especialmente no Novo Testamento, o coração indica a sede da vida interior, em contraste com a aparência exterior: “O homem guarda a aparência, o Senhor guarda o coração” (1Sam 16,7). O coração é o eu profundo do homem, sua própria pessoa, em particular sua inteligência e vontade. É o centro da vida religiosa, o ponto no qual Deus volta-se ao homem e o homem decide sua resposta a Deus.
Compreende-se agora o que representa para a Sagrada Escritura a dureza do coração: a rejeição de submeter-se a Deus, de amá-lo com todo o coração, de obedecer à sua lei. O termo sclerocardia, criado pela Bíblia, é significativo. O coração duro é um coração esclerosado, enrijecido, impermeável a toda forma de amor que não seja amor a si mesmo. As imagens usadas pela Escritura são aquelas do “coração de pedra” (Ez 36,26), do “coração incircunciso” (Jr 9,26), da “dura cerviz” (Dt 31,27).
O ponto de chegada da conversão é descrito, coerentemente, com as imagens do coração contrito, ferido, dilacerado, circunciso, do coração de carne, do coração novo: “Um espírito contrito é sacrifício a Deus, um coração contrito e humilhado, Deus, vós não desprezais” (Sl 51,19); “Sobre quem dirigirei o olhar? Sobre o humilde e sobre quem tem o espírito contrito e sobre quem teme minha palavra” (Is 66,2); “Podemos ser acolhidos com o coração contrito e com o espírito humilhado” (Dn 3,39).

Como se opera esta transformação do coração? É necessário distinguir duas situações. Quando se trata de primeira conversão, da incredulidade à fé, ou do pecado à graça, Cristo está fora e bate na parede do coração para entrar; quando se trata de sucessivas conversões, de um estado de graça a um mais elevado, da tibieza ao fervor, ocorre o contrário: Cristo está dentro e chama às paredes do coração para sair!
Explico-me melhor. No batismo, recebemos o Espírito de Cristo. Ele permanece em nós como em seu templo (1Cor 3,16), até que não seja expulso daí pelo pecado mortal. Mas pode acontecer que este Espírito termine por ser como que aprisionado e cercado pelo coração de pedra que se lhe forma ao redor. Não tem a possibilidade de expandir-se e permear por si as faculdades, as ações e os sentimentos da pessoa. Quando lemos a frase de Cristo no Apocalipse: “Eis que estou à porta e bato” (Ap 3,20), devemos entender que ele não bate de fora, mas de dentro; não quer entrar, mas sair.
O Apóstolo diz que Cristo deve ser “formado” em nós (Gl 4,19), isto é, desenvolver-se e receber sua plena forma; é este desenvolvimento que é impedido pelo coração de pedra. Às vezes se veem nos lados das estradas grandes árvores cujas raízes aprisionadas pelo asfalto lutam para expandir-se, elevando em trechos o próprio cimento. Assim devemos imaginar que é o reino de Deus dentro de nós: uma semente destinada a criar uma árvore majestosa sobre a qual pousam as aves do céu, mas que se lhe custa muito trabalho desenvolver-se pela resistência de nosso egoísmo.
Existem, obviamente, graus diversos nesta situação. Na maioria das almas empenhadas em um caminho espiritual Cristo não é aprisionado dentro de uma couraça, mas por assim dizer em liberdade vigiada. É livre para mover-se, mas dentro de limites bem precisos. Isto ocorre quando tacitamente se lhe diz o que pode pedir e o que não pode pedir. Rezar sim, mas sem comprometer o sono, o repouso, a sadia informação, a novela... Obediência sim, mas que não se abuse de nossa disponibilidade; castidade sim, mas não até o ponto de privar-se de qualquer espetáculo relaxante... Em suma, o uso de meias medidas.

Na história da santidade o exemplo mais famoso da primeira conversão, do pecado à graça, é Santo Agostinho; o exemplo mais instrutivo da segunda conversão, da tibieza ao fervor, é Santa Teresa de Ávila. Pode ser que aquilo que ela diz de si mesma na vida seja exagerado e ditado pela delicadeza de sua consciência, mas pode servir a nós para um útil exame de consciência. “De passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, comecei a colocar novamente em perigo a minha alma... As coisas de Deus davam-me prazer e não sabia desvincular-me das do mundo. Quero conciliar estes dois inimigos entre si tão contrários: a vida do espírito com os justos e os passatempos dos sentidos”.
O resultado deste estado era uma profunda infelicidade na qual podemos reconhecer também a nossa: “Passei quase vinte anos neste mar tempestuoso. Caio e me levanto, e me levanto tão mal que torno a cair. Estava assim em vida tão baixa de perfeição que não fazia quase mais conta dos pecados veniais, e não temia os mortais como deveria, porque não me separava dos perigos. Posso dizer que minha vida era das mais penosas que se possa imaginar, porque não gozava de Deus, nem me sentia feliz no mundo. Quando estava nos passatempos mundanos, o pensamento daquilo que devia a Deus me fazia transcorrer com pena; e quando era com Deus, via-me a me incomodar com os afetos do mundo” (S. Teresa d’Ávila, Vita (Vida), cc. 7-8).

Foi justamente a contemplação da Paixão a dar a Teresa o impulso decisivo à mudança. Eis como a santa descreve o momento de sua “conversão”: “Entrando um dia no oratório, os meus olhos pousaram sobre uma imagem que ali estava colocada, por ocasião de uma solenidade que se devia celebrar no monastério. Mostrava uma imagem de nosso Senhor coberto de chagas, ao vê-la me senti inteiramente abalada porque representava realmente o quanto ele tinha sofrido por nós: tinha tal dor no pensamento da ingratidão com que respondia àquelas chagas, era como se meu coração se partisse. Ajoelhei-me aos seus pés derramando muitas lágrimas, suplicando-lhe para dar-me forças para não ofendê-lo mais. Disse-lhe que não me levantaria de seus pés enquanto que não me concedesse aquilo que lhe pedia. Certamente ele me deve ter escutado, porque de agora em diante
Está escrito que, naquele dia, “a multidão, pensando em tudo o que tinha acontecido, voltou para casa batendo no peito” (Lc 23,48). Assim queremos fazer também nós, regressando a nosso trabalho depois de ter estado com Jesus no Calvário. Uma vez passados por nosso pequeno “terremoto” espiritual, vemos a cruz e a morte de Cristo mudar completamente de sentido e, de causa de acusação e motivo de medo e de tristeza, transformar-se em motivo de gozo e de segurança. O “por nós”, por nossa causa, transforma-se “em nosso favor”. A cruz surge agora como a vantagem e a glória, isto é, na linguagem paulina, como uma jubilosa segurança, acompanhada de comovida gratidão, à qual o homem se alça na fé e que se exprime no louvor e na ação de graças.
Podemos abrir-nos sem temor para aquela dimensão gozosa e pneumática, na qual a cruz não surge mais como “loucura e escândalo”, mas, ao contrário, “poder de Deus e sabedoria de Deus”. Podemos fazer dela nosso motivo de constante certeza, prova suprema do amor de Deus por nós, tema inexaurível de anúncio e, — sem nenhuma arrogância, mas com profunda humildade —, dizer com o Apóstolo: “Quanto a mim, não haja motivo de vaidade senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo!” (Gl 6,14).
No momento em que, de muitas partes, pressiona-se para remover o crucifixo das salas de aula e dos lugares públicos, nós cristãos, devemos mais ainda fixar às paredes de nosso coração. Iniciamos esta meditação pedindo a Jesus para fazer de nossa alma seu sudário. A Maria pedimos que ajude a realizar este programa com as palavras do Stabat Mater: “Santa Mãe, fazei que as chagas do Senhor sejam impressas em meu coração.

Notas
*Pe. Raniero Cantalamessa, Franciscano Capuchinho, foi ordenado sacerdote em 1958. Doutor em teologia e em literatura, foi professor de história das origens cristãs na Universidade Católica de Milão e diretor do Instituto de Ciências Religiosas. Membro da Comissão Teológica Internacional de 1975 até 1981. Em 1977 deixou o ensino acadêmico para dedicar-se inteiramente ao serviço da Palavra de Deus. Em 1980 foi nomeado
Pregador da Casa Pontifícia. Por causa dessa missão, todos os anos pregou em cada semana durante a Quaresma e o Advento na presença do Papa, dos cardeais, dos bispos da Cúria Romana e dos superiores das ordens religiosas. Esta homilia é a terceira pregação da Quaresma de 2006, sob o título: «AS ROCHAS DESPEDAÇARAM-SE».
[Tradução do original realizada por Zenit]


O TEMPO PASSA...




Não tenho tempo! Meu dia com certeza tem menos de 24 horas! Como vou dar conta de tanta coisa?....

Tempo, tempo... É um bem preciosíssimo que foge de nossas mãos, e nem mesmo nos damos conta de que só temos o agora, e que este momento é uma dádiva das mãos do Criador.

Quantos anos você tem? Quantos anos lhe foram concedidos até o dia de hoje, para que você deixe neste mundo sua marca, uma lembrança daquilo que você é, e com certeza um dia deixará de ser?

O texto abaixo, é da autoria de nosso Fundador, Pe. Tiago Alberione. Nele há uma oportuna reflexão sobre como podemos imprimir um ritmo eterno nos dias que nos fogem.

Tire um tempo, e leia este belíssimo convite: fazer de todos os seus tempos, tempos de aproveitar a graça que agora passa e não volta.

E se gostar, copie, cole e espalhe!



SANTIFICAR O TEMPO


(Pe. Alberione, às Anunciatinas - 3 de janeiro de 1965, Convegno delle Delegate, a Roma)

Terminamos um ano e começamos outro. O primeiro pensamento é este: “Agradeço-vos, Senhor, por me terdes criado, feito cristão e conservado até hoje”. Depois, ação de graças porque o Senhor vos quis chamar para uma vida de perfeição e de modo particular para o apostolado. Agora deveis assumir também maiores responsabilidades e maior mérito. E maior glória de Deus! Somos sempre devedores, temos só débitos para a nossa existência, a conservação e todas as graças recebidas, especialmente a vocação à perfeição. Temos sempre o que agradecer! Peçamos sempre ao Senhor! Se temos alguma coisa, devemos agradecer, e se temos necessidades, devemos invocar: esta é a nossa posição! No “Veni Creator” se pedem todas as graças que servem para o progresso.

Estamos diante de um novo ano: seja alegre, mas seja de progresso. Isto é tudo. Para que serve o ano? No tempo estão todos os dons de Deus: Da manhã à noite, e nem mesmo se pode dizer somente da manhã à noite, mas nas 24 horas! O Pai celeste nos olha sempre, e Jesus nos segue, nos ilumina, nos fortalece. Sim, na subida progredir, na subida para Deus, para a santidade, no progressivo apostolado. Sim, seja um ano de progresso. No tempo estão todos os tesouros, todos os bens.

Falando do tempo, devemos considerar quatro expressões da Bíblia: “O tempo foge irreparavelmente”, não podemos mais voltar atrás. Segunda: “Enquanto temos tempo, pratiquemos o bem” (Gl 6,10). Então, se o tempo foge, pratiquemos o bem enquanto temos tempo. Terceira: “Filho, observa o tempo” (Eclo 4,20). Meu filho, cuidado, para que não te fuja o tempo, que não te fujam os momentos que são desperdiçados, às vezes, do tempo! Quarta: “Não haverá mais tempo” (Ap 10,6). O Senhor determinou para cada um de nós aquela medida de tempo que está nos seus desígnios. Alguns se santificaram já aos oito ou nove anos de idade, outros aos quatorze ou dezoito, outros aos vinte e quatro. E há outros que chegaram aos noventa anos, aos cem anos! Mas ali se diz: “Não haverá mais tempo”

Em primeiro lugar, não se pode recuperar o tempo. Portanto, vigiar! Desejo-vos de coração uma vida longa e que o ano que ora começa seja bom, alegre. Mas este ano passará, e olhamos para trás como passou o tempo e como não o podemos reviver. As lamentações: Oh! Se eu tivesse nascido antes! Com as experiências que eu tenho agora, se então tivesse feito mais, se tivesse feito isto, se tivesse feito aquilo! O tempo não volta. A água desce da montanha e não volta. Portanto, utilizemos bem o tempo, enquanto o temos. Santifiquemos o melhor possível o dia de hoje, com todos os deveres que temos para cumprir neste dia. Sim, passará o dia, mas que ele seja cheio de méritos. E quando temos tempo, intensifiquemos este tempo. Pode haver comunhão e comunhão. Comunhão mais fervorosa e comunhão menos fervorosa. Pode haver uma confissão e pode haver outra confissão: vejamos na confissão semanal o que se faz. Vejamos sempre nos fins de semana se fizemos algum progresso.

Entre as desgraças de muitas pessoas existe esta: perder o tempo! E não se tem o cuidado de fazer mais um passo. E o tempo passa e ficamos atrás. Façamos o bem enquanto há tempo! E, portanto, valorizemos o tempo. Em todas as vinte e quatro horas, que não haja momentos inúteis! Dir-se-á: “Mas temos que dormir, temos que comer, temos que descansar e gozar de algum lazer. Mas São Paulo afirma: “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31). Portanto, dar glória a Deus também nisto porque é disposição de Deus que nos alimentemos, que descansemos. Por conseguinte, se faz por obediência naquilo que é necessário para a conservação da vida, para restaurar as forças e para se recuperar. Também todas as horas da noite são meritórias se forem vividas “para a glória de Deus”. “Dai-nos, Senhor, a vossa santa benção a nós e aos alimentos que agora vamos tomar para manter-nos no vosso serviço”. Então tomemos o alimento no serviço de Deus, e podeis acrescentar, ao menos interiormente, e para manter-nos no apostolado”

A maior consolação na hora da morte será esta: utilizamos o tempo que o Senhor nos deu! e não importa que ele nos tenha dado pouco ou muito. O que importa é que o utilizemos bem. O Senhor dá muitas graças a uma pessoa e dá menos graças a outra. Mas cada uma deve corresponder às próprias graças. E entre as graças, está o tempo que compreende todas as outras graças. A conseqüência é esta: encher a vida de bem. Não ser pessoas as quais, mesmo sentindo que não são deste mundo, procuram o que está no mundo, mas pessoas que vivem de fé. Vim de Deus, vim a este mundo para fazer alguma coisa segundo a vontade de Deus, e de novo deixarei o mundo e voltarei para Deus. Nascidos das suas mãos, voltamos a Deus levando o que fizemos.

Então, este ano seja repleto de coisas boas, durante todo o ano. Certamente tudo o que fazeis é bom, mas se pode fazer ainda com maior ou menor intensidade. Que pensaremos se a nossa morte for precedida de uma doença mais ou menos longa que nos deixe refletir? Olhando para trás e para frente, perto de passarmos para a eternidade, pensemos naquilo que São Paulo dizia de si, como era o seu passado e como devia ser o seu futuro, no que se refere à eternidade. Vejamos se podemos levar conosco a persuasão de São Paulo: “Combati o bom combate” (2Tm 4,7). Que significa isto? Tinha combatido o paganismo, o mal, tinha combatido sempre o que é mau e todo o mundo corrupto. Temos sempre de enfrentar este mundo. Oh! Conheceis bem este mundo, estais cercados de tanta gente! E dolorosamente vivemos num momento em que temos maiores preocupações. Sim, é preciso que sejamos fortes diante do mal, que sejamos generosos diante do mal. Se o Senhor vos deu um coração tão grande, um coração que ama a Deus e ama as almas, então não olhemos quem fez o mal, mas olhemos quem fez o bem, e sobretudo procurai difundir o conhecimento de Deus, e em substância, ajudar as almas a salvar-se. Um coração grande como o coração de São Paulo! “Cor Pauli, Cor Christi!”. O coração de Paulo, o coração de Cristo! O coração do Paulo era o coração do Cristo. E o coração do Cristo como era? “Vinde a mim todos”, para a salvação.

Outra expressão de São Paulo, quando estava perto de morrer: “Terminei a minha carreira” (2Tm 4,7). Quando é que progredimos? Quando fazemos a vontade de Deus, segundo a nossa vocação, segundo as circunstâncias de bem que se apresentam. Fizemos o que Deus queria, criados para isto, para esta missão, e com todos os meios para realizá-la. Depois “terminei”, cheguei ao extremo, ao fim da vida, ou seja: terminei todo o meu caminho e só me resta a eternidade. Então diz ainda: “Guardei a fé”. Segui e conservei a minha fé. “Desde já me está reservada a coroa da justiça que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia” (2Tm 4,8). Olhando o passado, São Paulo sentia-se tranqüilo: “Guardei a fé”, e cheio de confiança diante da morte: “está-me reservada a coroa da justiça”.

Sim, para todos a coroa! Mas é preciso ter sido vitorioso, ter combatido bem! Para ser premiado o soldado precisa ter combatido generosamente, fortemente. Quanta serenidade então na hora da morte! Então a morte será considerada como uma passagem, como empurrar uma porta: daqui tudo é segundo a fé, de lá, é tudo segundo a luz. A morte é apenas uma pequena passagem, um passo. Sim! E quem se encontra sereno, olhando a vida passada, sabe que remediou eventuais erros, e mesmo se houve pecados, os confessou, e por isto está tranqüilo, está na graça de Deus e o Senhor o espera: Voltamos ao Pai celeste. Antes entramos no mundo sem méritos e sem a graça, mas depois, pela graça de Deus, vivemos a vida e fizemos aquele bem que o Senhor queria de nós, e então voltamos a Deus ricos de méritos. O tempo que vos desejo durante este ano seja rico de méritos! Utilizai o tempo e que depois se possa dizer de vossos dias que são cheios.

Agora, outra consideração. Este bem, isto é, o dia, é o que empregamos em nosso diversos deveres de piedade, de apostolado, nos trabalhos de estado que tendes ou na posição em que vos encontrais. Sim, tudo isto é utilizado, oferecido a Deus, e portanto, enriquece a alma de méritos. Porém, é necessário ainda entrar mais profundamente em nós, para vermos como vivemos a vida espiritual e como crescemos nela. Temos em nós duas vidas: uma é a vida humana: a criança nasce e é filho dos seus pais, mas quando chega ao batismo se torna filho de Deus, porque em nós há duas vidas, a vida humana que Deus nos deu e a vida divina da graça. A graça de Deus é um germe, é uma semente divina que é introduzida em nós por meio do batismo. Se a criança morre logo depois, ou antes do uso da razão vai para o céu porque tem a graça de Deus, é Filho Deus, e os filhos de Deus vão para a casa do Pai Celeste que os espera. Este germe é destinado a desenvolver-se. Quando se chega ao uso da razão, quando se chega à primeira comunhão, as primeiras confissões, à crisma, etc... o germe cresce, porque os sacramentos servem para desenvolvê-lo. Este germe, por assim dizer, é também comparado com a semente que é destinada a crescer, a tornar-se antes uma plantinha, depois uma grande árvore que estende os seus ramos e as suas folhas, flores e frutos. Esta é a vida! E é esta vida espiritual que deve desenvolver-se. Até que ponto? Segundo os desígnios de Deus para cada alma. Quando crescemos? Jesus Cristo entra na alma quando a alma é posta na graça de Deus. É Jesus que está em nosso íntimo, mas depois, mediante os sacramentos, mediante a virtude, as boas obras e o apostolado, a alma vai crescendo. Diz São Paulo na carta aos Gálatas: “Meus filhos, por quem eu sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4,19).

Esta vida sobrenatural seja santificada! De fato quando a alma parte, deixa o corpo, e a seu tempo virá também o corpo a tomar parte dos gozos da mesma alma. Procuremos chegar a um crescimento completo, como diz São Paulo, à virilidade plena de Cristo, segundo os desígnios que Deus teve para cada um de nós. Este ser que devemos cultivar, isto é, Jesus que se desenvolve, digamos, em nós, porque em nós Jesus Cristo se forma gradativamente mediante os sacramentos, as boas obras, as obras de apostolado e o que na vida damos e oferecemos para a glória de Deus. Jesus Cristo em nós até “é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20), isto é, quando temos os pensamentos de Jesus Cristo, e pensamos como Ele, ou melhor, é Ele que pensa em nós; quando no lugar de nosso coração está o coração de Cristo, isto é, o nosso coração é como o coração de Jesus que procurou sempre a glória do Pai e a salvação das almas até dar a sua vida sobre a cruz. Depois, não haverá mais a nossa vontade, mas a vontade de Jesus Cristo, para que Ele nos guie, a vontade do Pai que se estende a tudo, não só aos mandamentos, mas também aos conselhos evangélicos que abraçastes: “Se queres ser perfeito” cresça em nós Jesus Cristo, como diz São Paulo.

“O cristão é outro Cristo!” O religioso, a religiosa ainda mais: o Cristo mais completamente desenvolvido em nós. Portanto, como será tranqüila a sua morte! Será o ingresso imediato no céu, porque desapegada das coisas mundanas por meio dos votos de pobreza, castidade e obediência, o vôo da alma para Deus será livre, como o da águia que se dirige para o céu. Deve-se crescer realmente “até que Cristo seja formado em nós” (Gl 4,19), ou até o estado de homem perfeito à medida da estatura da plenitude do Cristo” (Ef 4,13). E constatamos isto: que Jesus Cristo está na Igreja, mas a Igreja se desenvolve pouco a pouco e assim se desenvolve pouco a pouco em nós a vida de Cristo.

Que é que devemos fazer agora? Há almas que progridem ano a ano, porque se alimentam de Evangelho, se alimentam do pão eucarístico, se alimentam de tudo o que na vida encontram de bom e de santo. São almas que vão à procura de ocasiões de mérito, como os mundanos vão à procura todos os dias, todos os momentos de estar bem, de estar melhor, isto é, de gozar a vida e evitar o mais possível o sofrimento e, portanto, têm em mente os prazeres, a honra e em particular o que se refere à satisfação da parte humana. Mas têm vistas muito curtas, vêem somente até a morte, isto é, até que dure esta vida. Mas vós que tendes uma grande luz, tendes uns óculos que vos dão uma luz especial, olhai para a eternidade. São cegos estes mundanos, não pensam que esta vida é breve enquanto que a outra vida é eterna, e se é pequeno o prazer neste mundo, será eterno o gozo na eternidade. Sim! Certamente sois muito mais contentes, serenas e tranqüilas que os mundanos na sua satisfação, porque possuís a Deus. Uma alma se queixava com Cristo: “Sou muito miserável, sou muito pobre”, e Jesus depois de tantas lamentações, se fez ouvir: “Mas quando me possuis, tens tudo!” E então ela ficou consolada.

Cada ano subimos um degrau da escada que leva ao céu. E chegados ao fim de um ano, nos encontramos num patamar. Antes estávamos num patamar inferior e depois passamos para o superior, mais alto, e daí se retoma a subida. Agora começou o ano e já avançastes três degraus. Depois haverá outro degrau da escada. No fim do ano cantamos “Te Deum”, porque chegamos a outro patamar. E assim vos desejo muitos anos de vida, mas vos desejo especialmente “dias cheios” de méritos. Que à noite os vossos dias tenham sido cheios! Peçamos perdão ao Senhor das faltas cometidas, tendo a consolação de saber que “o Senhor me guiou, me ajudou durante o dia”. E o descanso torna-se suave, porque os membros estão cansados, mas trabalharam por Deus, pela eternidade.

Agora, portanto, o propósito seria este: fidelidade no serviço de Deus e no apostolado. E enquanto o vosso apostolado se amplia, o vosso coração se expande sempre mais. Abracemos horizontes mais amplos! Tendes talvez um pequeno círculo de bem a fazer, mas talvez agora o círculo se amplia. Devemos procurar ter um coração conforme ao coração de Jesus. Como era o coração de Jesus? São Paulo queria chegar a todos. Aliás se pode chegar a todos por meio da oração: oremos para que a Igreja se estenda no mundo, para que Jesus Cristo tome posse das almas, que reine em toda a parte. Cantemos louvores ao Senhor e pensemos em quem? ...no mundo! Trazei em vosso coração este desejo: venham todos a Jesus Cristo, à Igreja. Três bilhões e oitocentos milhões de homens (hoje: 6 bilhões de pessoas – Católicos: 1.098 bilhão)! Mas quantos são agora os que conhecem Jesus Cristo, e quantos o seguem? Expandamos o nosso coração! No Oriente há um bilhão e cem milhões de homens e quase todos, ou não conhecem Jesus Cristo ou não o seguem. E o coração de Jesus que desejos tem? E vós? “Até que Cristo se forme em vós”. O coração seja formado segundo o coração de Jesus. Que a mente viva a mente de Jesus. A vontade que seja a vontade de Jesus, que viva verdadeiramente Jesus Cristo em nós.

Entretanto tem sido uma seqüência de graças que já recebemos em nossa vida e continuamos receber: “Senhor, concede-me esta e aquela graça, mas sobretudo dá-me a graça de corresponder à graça”. Porque se não aproveitamos as graças é como se jogássemos pela janela ouro e dinheiro. Oh! Quantas graças se perdem, por não serem aproveitadas, mas vós viestes e a vossa presença indica que quereis realmente transformar num tesouro o ano e o tempo que o Senhor vos conceder.

Posso ter poucos dias, até poucas horas, mas enquanto viver, cada noite, a última coisa que farei no dia, será abençoar a todos. E agora vos dou a benção

Oremos uns pelos outros. O Senhor esteja sempre convosco. Sede felizes durante o ano. Se alguma dor vier bater à vossa porta, deixai-a entrar. Seja feita a vontade do Senhor!

(Bem-aventurado Tiago Alberione)