quinta-feira, 10 de abril de 2014

A perda do sentido do pecado



O texto abaixo faz parte da Exortação Apostólica Reconcilitio et Paenitentia, Reconciliação e Penitência, do Beato João Paulo II. Às vésperas de sua canonização, João Paulo II tem muito a nos dizer sobre a perda do sentido do pecado, mal que aflige nossa humanidade pós moderna. 
Esta Exortação Apostólica foi redigida em 1984, ou seja, há exatos 30 anos. De lá para cá, ganhamos ou perdemos terreno em face da perda do sentido do pecado? Que saibamos buscar no Sacramento da Reconciliação, já às vésperas da Semana Santa, a restauração da nossa amizade com Deus, que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou à morte pela nossa salvação.


"O sentido do pecado tem a sua raiz na consciência moral do homem e é como que o seu termômetro. Anda ligado ao sentido de Deus, uma vez que deriva da consciência da relação que o homem tem com o mesmo Deus, como seu Criador, Senhor e Pai. E assim como não se pode apagar completamente o sentido de Deus nem extinguir a consciência, também não se dissipa nunca inteiramente o sentido do pecado.

Entretanto, não raro no decurso da história, por períodos mais ou menos longos e sob o influxo de múltiplos fatores, acontece ficar gravemente obscurecida a consciência moral em muitos homens. «Temos nós uma ideia justa da consciência?» - perguntava eu há dois anos num colóquio com os fiéis - «Não vive o homem contemporâneo sob a ameaça de um eclipse da consciência, de uma deformação da consciência e de um entorpecimento ou duma "anestesia" das consciências?».

Demasiados sinais indicam que no nosso tempo existe tal eclipse, (...).

Porquê este fenômeno no nosso tempo? Uma vista de olhos de algumas componentes da cultura contemporânea pode ajudar-nos a compreender a atenuação progressiva do sentido do pecado, exatamente por causa da crise da consciência e do sentido de Deus, (...).

O «secularismo», que, pela sua própria natureza e definição, é um movimento de ideias e de costumes, o qual propugna um humanismo que abstrai de Deus totalmente, concentrado só no culto do empreender e do produzir e arrastado pela embriaguez do consumo e do prazer, sem preocupações com o perigo de «perder a própria alma», não pode deixar de minar o sentido do pecado. Reduzir-se-á este último, quando muito, àquilo que ofende o homem. Mas é precisamente aqui que se impõe a amarga experiência a que já aludia na minha primeira Encíclica; ou seja, que o homem pode construir um mundo sem Deus, mas esse mundo acabará por voltar-se contra o mesmo homem.  Na realidade, Deus é a origem e o fim supremo do homem e este leva consigo um gérmen divino.  Por isso, é a realidade de Deus, que desvenda e ilumina o mistério do homem. É inútil, pois, esperar que ganhe consistência um sentido do pecado, no que respeita ao homem e aos valores humanos, quando falta o sentido da ofensa cometida contra Deus, isto é, o verdadeiro sentido do pecado.

Trata-se de uma verdadeira «reviravolta e derrocada dos valores morais»; e «o problema não é tanto de ignorância da ética cristã», «mas sobretudo do sentido dos fundamentos e critérios das atitudes morais».  O efeito desta reviravolta ética é sempre também o de mitigar a tal ponto a noção de pecado, que se acaba quase por afirmar que o pecado existe, mas não se sabe quem o comete.

Esvai-se, por fim, o sentido do pecado quando — como pode acontecer no ensino aos jovens, nas comunicações de massa e na própria educação familiar — esse sentido do pecado é erroneamente identificado com o sentimento mórbido da culpa, ou com a simples transgressão das normas e preceitos legais.

A perda do sentido do pecado, portanto, é uma forma ou um fruto da negação de Deus: não só da negação ateísta, mas também da negação secularista. Se o pecado é a interrupção da relação filial com Deus para levar a própria existência fora da obediência a ele devida, então pecar não é só negar Deus; pecar é também viver como se ele não existisse, bani-lo do próprio cotidiano.

Restabelecer o justo sentido do pecado é a primeira forma de combater a grave crise espiritual que impende sobre o homem do nosso tempo. Mas o sentido do pecado só se restabelecerá com uma chamada a atenção clara para os inderrogáveis princípios de razão e de fé, que a doutrina moral da Igreja sempre sustentou.

É lícito esperar que, sobretudo no mundo cristão eclesial, reaflore um salutar sentido do pecado. A isso levarão uma boa catequese, iluminada pela teologia bíblica da Aliança, a escuta atenta e o acolhimento confiante do Magistério da Igreja, que não cessa de proporcionar luz as consciências, e uma prática cada vez mais cuidada do Sacramento da Penitência".


Beato João Paulo II

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