A notícia se espalhou rapidamente em todo o planeta. Charlie Gard, o
bebê britânico portador de uma doença grave, morreu em um hospital de
Londres. Embora já fosse esperada, a morte de Charlie deixou todo mundo
triste.
Nos últimos meses, a situação de Charlie chamou a atenção.
Diagnosticado com uma doença terminal, o bebê que ainda não tinha um ano
de idade, teve sua vida e sua morte no centro de uma amarga disputa
legal. Enquanto os médicos de Charlie julgavam melhor suspender os
tratamentos, os pais dele não concordavam. Eles queriam dar ao filho uma
chance de lutar pela vida, mesmo que os tratamentos experimentais
apenas melhorassem sua grave situação. O que aconteceu deixou de ser uma
disputa sobre o tratamento de Charlie e tornou-se uma batalha judicial
sobre os direitos parentais. Entre o hospital e os pais, quem deveria
ter a última palavra ao determinar o que seria melhor para uma criança
doente? Em inúmeras audiências, os pais de Charlie, Chris Gard e Connie
Yates, perderam quase todas as apelações. Os tribunais negaram os
pedidos que eles fizeram para transferir o garoto para outro hospital e
buscar tratamento experimental no exterior. Até mesmo a solicitação
para levar Charlie para a morrer na sua própria casa foi negada. A cada
passo, os juízes contestavam os pedidos com base em evidências clínicas.
Resultado: Charlie não deixou o hospital no qual ele foi diagnosticado e
os desejos dos médicos finalmente foram cumpridos.
O debate legal sobre o caso Charlie Gard vai continuar como era de se esperar.
Mas não é só isso. As questões culturais e religiosas também serão
discutidas. Por exemplo: no lado religioso, alguns fiéis podem encontrar
na doença e na morte de Charlie um desafio à fé. Embora as fotos do
batismo de Charlie nos consolam como cristãos, podemos nos perguntar, no
entanto, por que Deus não atuou radicalmente para salvar a vida do
pobre Charlie?
Perguntas como esta podem ser inevitáveis, mas não ficam sem
respostas. Como escrevi alguns dias atrás, o propósito da oração de
intercessão não é mudar a vontade de Deus; seu objetivo é nos mudar.
Santo Agostinho explicou isso, há séculos, a uma nobre cristã que
enfrentava inúmeros desafios. O santo bispo incentivou a mulher
sofredora a rezar por uma “vida feliz”, que é quando possuímos tudo o
que desejamos, contanto, é claro, que não desejemos nada do que não
devemos ter. Em outras palavras, a felicidade consiste em possuir o que
Deus quer nos dar. A visão de Agostinho, aqui, é instrutiva. Ao abrirmos
nossos corações para Deus – para nós e para os outros – a nossa oração é
purificada, de modo que, ao longo do tempo, começamos a desejar mais o
que Deus quer nos dar e menos o que nós gostaríamos de ter. Mesmo em
tempos de angústia, explicou Agostinho, a oração transforma nosso
sentimento de dor e ansiedade para iniciar a busca do bem maior que Deus
nos proporciona através do nosso sofrimento.
Na sua doutrina de oração, São Tomás de Aquino destacou o mesmo
ponto. Ele ensinou que rezar pela salvação, por uma graça, por uma
conversão e pelo crescimento de uma virtude é alinhar nossas vontades às
de Deus. Consequentemente, Deus não é aquele que muda como resultado de
nossa oração; nós é que mudamos. Apesar disso, Tomás de Aquino e
Agostinho não acreditavam que nós não deveríamos orar também pelos bens
temporais – por um bom trabalho, pela preservação da doença, pela
proteção contra os inimigos -, mas ambos consideravam que nosso desejo
por esses bens deveria ser orientado para a felicidade final e eterna
que Deus quer para cada um de nós. O desejo de atingirmos o Céu,
portanto, representa o fruto da nossa oração: de que a vontade de Deus
seja feita, tanto na terra quanto no Céu. Mesmo que soframos por causa
do desemprego, de uma doença difícil ou dos ataques de nossos inimigos, a
nossa vontade de chegarmos ao Céu deve permanecer – e até mesmo
crescer.
Quando aplicados à curta vida de Charlie Gard, os ensinamentos
cristãos sobre a oração podem ser um desafio. Precisamos de muita fé
para entender que a morte do pequeno Charlie, que ocorreu apesar do
derramamento de oração por sua vida, nos aponta para algo bom que Deus
quer nos dar, algo maior do que o mal que representa a morte de Charlie.
Este mistério não deve nos surpreender, é claro. Considere a vida e a
morte de Jesus. A paixão de Cristo levou-nos a um bem maior do que o mal
da execução de Deus-Homem. Assim também se dá com todo o mal que
enfrentamos; Deus permite isso apenas por causa de um bem maior.
Consequentemente, enquanto pedíamos a vida de Charlie Gard, buscávamos,
de fato, não mudar Deus, nem forçar Sua mão para agir, mas, sim, mudar a
nós mesmos. Através da nossa oração, buscamos alcançar o bem maior que
Deus vai conceder depois de permitir a doença de Charlie. Agora que
nossa oração mudou e rezamos pelo repouso de sua alma, o trabalho de
mudar-nos através da busca desse bem maior, que envolve o sofrimento da
morte de Charlie, deve se intensificar.
Talvez esta oração já esteja dando frutos. Talvez nunca possamos
saber nesta vida a natureza exata do bem maior pelo qual Deus permitiu
que Charlie Gard morresse tão jovem. Seja qual for a natureza específica
desta graça, o mundo já parece melhor – mais humano, talvez – por ter o
#CharlieGard como símbolo dos direitos parentais e de oração pelo
ordenamento dos direitos civis. Já podemos ver que, na providência de
Deus, nem a morte de Charlie nem nossas orações por sua vida foram em
vão.
Senhor, conceda-lhe o descanso eterno e permita que ele seja iluminado pela luz perpétua. Que ele descanse em paz. Amém.
Trechos do artigo de Fr. Aquinas Guilbeau, OP
Nenhum comentário:
Postar um comentário